O Studio Ghibli e a dicotomia com a IA
O Studio Ghibli e a dicotomia com a IA
Artigo

O Studio Ghibli e a dicotomia com a IA

Nos últimos dias, você deve ter visto em suas redes sociais alguma adaptação de fotos com o estilo de desenho do Studio Ghibli. Isso aconteceu depois que o ChatGPT fez uma atualização em seu sistema, permitindo que qualquer pessoa enviasse uma imagem e pedisse para que ela fosse refeita no “estilo Ghibli”. O resultado era impressionante: cheio de detalhes, sombras e formas, parecendo, de fato, uma ilustração feita por um artista do famoso estúdio japonês.

Depois de viralizar nas redes sociais — com direito à participação de celebridades, policiais, do governo americano e de muitos usuários experimentando a técnica —, surgiu um debate sobre o uso dessa ferramenta para replicar estilos e metodologias que são capturados (sem autorização) pelas big techs de IA.

Em meio aos discursos a favor e contra a utilização da IA para representar o estilo do Studio Ghibli, é essencial que essa discussão não fique apenas na superficialidade. Precisamos dar um passo adiante na regulamentação e na proteção de dados.

Conhecendo um pouco o Studio Ghibli

O Studio Ghibli é um dos estúdios de animação mais renomados do Japão, fundado em 15 de junho de 1985 por Hayao Miyazaki, Isao Takahata e Toshio Suzuki. A ideia de criar o estúdio surgiu anos antes, quando Miyazaki e Takahata se conheceram em 1974 durante a produção do anime Heidi na Toei Animation. Eles compartilhavam o sonho de produzir animações de alta qualidade, algo que não era comum na época devido aos orçamentos limitados dos estúdios japoneses.

A fundação do Studio Ghibli foi impulsionada pelo sucesso do filme Nausicaä do Vale do Vento em 1984, dirigido por Hayao Miyazaki. O primeiro filme do estúdio foi O Castelo no Céu, lançado em 1986, que se tornou o filme animado de maior bilheteria do ano no Japão.

Em 1988, o estúdio lançou dois filmes simultaneamente: Meu Amigo Totoro e Túmulo dos Vagalumes. Embora Meu Amigo Totoro não tenha sido um sucesso imediato, ele se tornou um clássico e seu personagem Totoro é hoje um símbolo do estúdio.

Nos anos 1990, o Studio Ghibli continuou a produzir filmes aclamados, como O Serviço de Entregas da Kiki (1989), Memórias de Ontem (1991) e Porco Rosso (1992). Este último foi um grande sucesso, superando a bilheteria de A Bela e a Fera da Disney no Japão. 

O estúdio alcançou seu auge com filmes como Princesa Mononoke (1997) e A Viagem de Chihiro (2001), que ganhou o Oscar de Melhor Filme de Animação em 2003. Outros filmes notáveis incluem O Castelo Animado (2004) e Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar (2008).

Hoje, o Studio Ghibli é reconhecido globalmente por suas produções de alta qualidade e sensibilidade artística. Ele se destaca por sua versatilidade estilística e narrativa, combinando uma estética visual rica em detalhes com temáticas profundas que exploram a complexidade humana e a relação com a natureza. Enquanto filmes como Meu Amigo Totoro evocam uma atmosfera lúdica e nostálgica, Princesa Mononoke apresenta um tom mais sombrio e reflexivo, demonstrando a amplitude criativa do estúdio. Além disso, a busca pela inovação técnica e artística permitiu ao Ghibli explorar novas linguagens, como a computação gráfica em Pom Poko e a estética aquarelada de Meus Vizinhos, Os Yamadas. Esse compromisso com a experimentação, aliado à força emocional de seus personagens, garantiu ao estúdio um impacto cultural duradouro, influenciando não apenas o cinema de animação, mas também a moda, o design e a arte compartilhada nas redes sociais.

Os desenhos do Studio Ghibli ainda mantêm uma forte componente artesanal, especialmente em termos de desenho à mão e animação tradicional. Embora o estúdio tenha incorporado tecnologias modernas, como a computação gráfica, em alguns de seus filmes, a essência da sua produção continua sendo a técnica manual. Isso é evidente na atenção aos detalhes e na riqueza visual que caracterizam suas obras.

A contradição do estilo Ghibli e a IA

Em 2016, quando a discussão sobre IA já tomava corpo e o ChatGPT nem existia, Miyazaki falou sobre o tema:

“Estou completamente enojado. Se você realmente quer fazer coisas assustadoras, pode ir em frente e fazer. Eu nunca desejaria incorporar essa tecnologia ao meu trabalho. Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”

Hayao Miyazaki, fundador e principal nome do Studio Ghibli

A irritação e a oposição de Miyazaki fazem todo o sentido. Imagine você, em plenos anos 2020, manter um estúdio de animação que preza pela confecção de uma arte extremamente manual, onde os desenhos são feitos e animados com esmero, cuidando de cada detalhe. Além da parte técnica, há ainda a questão filosófica e ética. O Studio Ghibli é reconhecidamente um espaço de questionamento, filosofia e reflexão sobre a vida e a própria existência. Tudo isso se contrapõe ao que a IA representa.

Algumas pessoas têm argumentado que nadar contra essa maré da IA é irrelevante, pois é uma tecnologia “veio para ficar”. No entanto, a discussão vai muito além disso.

Um dos pontos é justamente que os avanços tecnológicos sempre foram moldados por regulamentações e decisões éticas. Por exemplo, armas químicas e clonagem humana são avanços científicos que foram limitados por questões morais e sociais. A aceitação irrestrita da IA na arte, sem considerar seus impactos, não é um destino inescapável, mas uma escolha política e econômica. Vale lembrar que a IA se alimenta de dados não autorizados. Aí fica o questionamento: se o estilo não pode ser registrado, isso significa que é ético replicá-lo automaticamente em escala industrial?

Outro ponto é equiparar a IA a ferramentas como Photoshop ou câmeras digitais. Há uma diferença crucial: essas ferramentas exigem habilidade humana direta, enquanto a IA gera conteúdo autônomo a partir de dados capturados. Ou seja, um ilustrador que usa Photoshop ainda precisa dominar composição, cores etc. Já uma IA pode imitar um estilo sem entender sua essência.

Não é à toa que várias estrelas de Hollywood têm se manifestado contra o uso não autorizado de suas obras para treinar sistemas de inteligência artificial generativa. Alguns atores, como Al Pacino, Daniel Day-Lewis, Judi Dench e Meryl Streep, criticam o uso de IA no cinema, argumentando que ela pode substituir atores humanos e tornar os filmes mais artificiais. No entanto, outros, como Tom Cruise e Leonardo DiCaprio, veem a IA como uma ferramenta valiosa para criar efeitos especiais mais realistas.

Veja que a discussão segue por um caminho em que a utilização da IA como ferramenta ainda carece de regulamentação. Pesquisadores têm debatido intensamente sobre a regulamentação da IA, especialmente em 2025, quando se esperam avanços significativos na criação de normas e padrões para o uso ético e seguro da tecnologia. Além disso, há desafios associados ao uso da IA, como o impacto na privacidade e na segurança dos dados. A regulamentação pode impulsionar a inovação no setor tecnológico, atraindo investimentos e estimulando parcerias entre empresas de tecnologia e outras indústrias.

Mesmo sem se envolver diretamente, simbolicamente, o Studio Ghibli contribui para o debate

O que esse caso do ChatGPT e do Studio Ghibli mostra é que já passou da hora de discutirmos formas de regulamentação.

Como garantir que a IA não seja apenas um mecanismo de extração de valor às custas de artistas? Até que ponto simplesmente dizer que a “IA veio para ficar e temos que nos adaptar a ela” não é uma forma de naturalizar injustiças?

Fica a reflexão.

Deixe seu comentário

×
Cinemação

Já vai cinéfilo? Não perca nada, inscreva-se!

Receba as novidades e tudo sobre a sétima arte direto no seu e-mail.

    Não se preocupe, não gostamos de spam.