Crítica: Maré Alta
Maré Alta – Ficha técnica:
Direção: Marco Calvani
Roteiro: Marco Calvani
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2025.
Elenco: Marco Pigossi, James Bland, Marisa Tomei
Sinopse: Com o coração partido e à deriva, o imigrante brasileiro Lourenço procura um propósito na meca queer de Provincetown, onde inicia um romance inesperado com Maurice.
.
Maré Alta, em cartaz nos cinemas, é o primeiro longa-metragem do diretor, roteirista e ator italiano Marco Calvani. É também seu primeiro trabalho nas telas com o marido, o ator brasileiro Marco Pigossi. O filme dirigido e roteirizado por Calvani aposta num minimalismo clássico do cinema independente queer, quando condensa sua história num ambiente pequeno, com poucos personagens e as agruras do protagonista em se livrar da prisão emocional que se encontra. Essa conjuntura produz um filme que aborda assuntos complexos, mas a forma com que toca esses pontos é empobrecida, já que recusa a ousadia que uma narrativa desse gênero tende a proporcionar.
Lourenço (Marco Pigossi) é um brasileiro indocumentado vivendo numa cidade costeira dos Estados Unidos, que faz trabalhos braçais em casas de veraneio. Com o fim da temporada e sem grandes perspectivas após o término de um relacionamento importante, se vê perdido com sua situação migratória e um novo romance que aparece em sua vida. Maré Alta propõe analisar uma situação de várias nuances: a precariedade do trabalho de imigrantes nos Estados Unidos, a repressão da sexualidade, a moralidade cristã, a questão racial e as opressões das pessoas que vivem à margem. Nem sempre acerta em todas elas, mas não faz feio frente aos desafios que impõe a si mesmo.
É preciso destacar o trabalho de Pigossi como protagonista. Existe beleza na forma que trabalha o corpo, sempre contido, curvado, receoso. É um filme que não tem medo da corporeidade, inclusive nas cenas de sexo, que são filmadas com cuidado, mesmo quando apresenta uma situação que fica na berlinda sobre o consentimento, embora não explore esse ponto, que poderia aprofundar os dramas já existentes. De alguma forma, intencionalmente ou não, isso indica a situação do protagonista que vive na fronteira de si mesmo. Após ter levado um ghosting do ex-namorado, sua vida parece ter perdido o propósito, não há grandes motivos para encontrá-lo novamente e isso estabelece uma posição de não-lugar que o acompanhará.
Algo muda quando Lourenço conhece Maurice (James Bland), que chega no fim do verão e fica por pouco tempo. Surge uma conexão interessante entre os dois, algo como um tradicional romance de verão, mas sem final feliz. Nesse ponto, Calvani introduz o debate racial, pois Maurice é um homem negro, o que de alguma maneira, apesar das diferenças importantes, cria uma identificação por serem sujeitos vistos à margem. Isso fica claro na primeira conversa íntima entre os dois, quando Lourenço diz que seu maior medo é Deus — Lourenço foi criado num lar evangélico de uma cidade do interior, com uma mãe muito religiosa, sendo esse um dos motivos para ter saído do Brasil —, e Maurice diz que seu maior medo é a polícia.
Esse diálogo impõe uma limitação crucial do roteiro de Calvani: a falta de sutileza. O racismo, a culpa cristã e situação migratória irregular são tratados de forma simplista, do início ao fim. A culpa cristã aparece apoiada nos clichês naturais de uma pessoa queer — a família hipereligiosa, o pecado, etc; o racismo apoiado na força do homem negro — homem negro musculoso é sempre ativo; a imigração através da invalidação do diploma universitário — se torna obrigado a limpar privada, pintar casa, etc. Esses elementos combinados, contribuem para uma perda gradativa de intensidade dos conflitos, mesmo que as questões debatidas sejam importantes e que tenham eco na vida real.
Clichês semelhantes aparecem nas resoluções de conflitos e empurrões que a personagem precisa para seguir em frente. Em determinado ponto, Lourenço, em uma balada, recusa o uso de drogas e em seguida descobre algo importante sobre o ex-namorado, mas assim que têm acesso à informação, ele usa drogas, dá um gelo em Maurice e acorda de ressaca, sem o celular e atrasado para o trabalho. Esse é só um exemplo das constantes situações previsíveis que o roteiro de Calvani apresenta. A pequena participação de Marisa Tomei — que é produtora do filme — serve para a clássica conversa inspiradora que acontece dentro do carro, depois de terem encontrado alguma identificação plantada minutos antes. Esse mesmo movimento serve para o proprietário da casa que Lourenço aluga, Scott (Bill Irwin), que tem função narrativa semelhante.
Calvani não parece preocupado em evitar os clichês, nem no roteiro, nem na direção. A parceria com o diretor de fotografia Oscar Ignacio Jiménez, ajuda a criar respiros nas imagens, com planos abertos interessantes no oceano. Se estabelece, então, um paralelo com o mar, lugar que Lourenço sempre vai após o fim do expediente. Estar boiando na imensidão do oceano, intencionalmente reforça o não-lugar da personagem e o estar à deriva das próprias vontades, além da tentativa de se reinventar longe de casa, mesmo que a ideia de voltar continue batendo à porta. Esse movimento intensifica a angústia, justamente pela ideia de Lourenço ter imigrado para fugir de uma opressão em seu país que, como sabemos, a depender da região, atua com violência contra pessoas queers.
Apesar das gafes evidentes e a falta de habilidade no roteiro e inventividade na direção, Maré Alta consegue ser um filme simpático, carinhoso com o protagonista e especialmente resolutivo. Fundamentado na forte atuação de Marco Pigossi, que trabalha com cuidado e intenção, a direção de Calvani se sobressai ao filmar seu protagonista com algum apuro estético. O empobrecimento dos diálogos evidencia um roteiro pouco refinado, mas não perde de vista as motivações do personagem principal, indicando uma estreia promissora de Marco Calvani em longas-metragens. É fato que ainda precisa aprender passos mais elaborados da dança cinematográfica, já que perde o equilíbrio algumas vezes. A sorte — se podemos dizer assim —, é que Maré Alta sabe do lugar corpóreo no cinema queer e utiliza isso com destreza e simpatia, aproveitando para finalizar sua história de um jeito maduro e entregar um trabalho que não desagrada e nem produz grandes suspiros.
Nota: 3 /5