Uma História Real: a poesia de David Lynch
Em 1999, David Lynch dirigiu um filme completamente linear baseado na história de Alvin Straight, um homem de 73 anos que atravessou o interior dos Estados Unidos para visitar o irmão doente. A história comoveu o cineasta e o filme acabou sendo comprado pela Walt Disney Pictures pra ser distribuído, tudo no projeto pode parecer atípico do cinema de Lynch, mas na realidade isso é só uma impressão. O que temos é o registro do Lynch de um melodrama sobre envelhecer, da bondade humana, da reparação dos erros do passado que sempre podem ser superados e da empatia. É sensacional ver um artista tão conhecido pelo abstrato, pelo excêntrico e pela esquisitice absorver e se adaptar de modo tão absoluto e com tanto controle a uma linguagem e uma narrativa tão clássicas e tão realistas na sua construção sem abandonar nunca as suas próprias sensibilidades e a sua identidade ao demonstrar a sua versatilidade estilística.
Aquelas subjetivas que ele faz, a trilha sonora sempre esplendida do Angelo Badalamenti, que entende o Lynch mais do que ninguém, o seu amor pelas imagens da estrada listradas e o fluxo da câmera pela natureza fazem com que viajemos junto com Alvin, num filme que transpõe um ritmo e uma condução calma e suave que é da própria vida do seu protagonista. Chega a lembrar muito um filme da Kelly Reichardt, do Clint Eastwood, do John Ford, do Robert Mulligan ou do John Sayles mas acima e para além de tudo isso é sempre um filme do David Lynch.
É sempre tão delicado quanto é sempre tão melancólico, intimista e lírico no seu tom e direção. O rosto do Richard Farnsworth emana um poder tão imenso junto com a sua voz doce, mas frágil, e os seus olhos gentis. E o Lynch o acompanha fazendo o máximo de uso disso junto com os ambientes e movimentos ao redor deles levando a um dos mais magníficos trabalhos de um ator em qualquer filme. O Oscar é uma futilidade e apontar discordâncias com ele é um exercício óbvio, mas qualquer ator ter vencido dele e ele ter perdido pro Kevin Smith em Beleza Americana é um dos maiores absurdos da premiação. Sissy Spaceck e Harry Dean Stanton com o pouco tempo de tela que tem também estão gigantescos.
Pouco se fala como o David Lynch é um cineasta mais profundamente apaixonado pelo Estados Unidos e os seus símbolos, mas sem cair num ufanismo bobo e brega que torna isso um problema, pelo contrário, até por isso consegue ver com clareza e muita profundidade o quão quebrado isso tudo é, mas também perceber e traduzir na visão dele uma beleza em tudo isso. E esse filme é todo dedicado a essa beleza. A sua fascinação por essa lógica “Americana”. O fato dele ter interpretado o John Ford só fica ainda mais lindo. Quem dera todos os filmes motivacionais fossem assim. E quem dera fosse mais comum um David Lynch fazer um filme desses pra Disney.
Dois irmãos juntos olhando para as estrelas em silêncio, tendo uma troca emotiva imensa nesse simples gesto e nessa ação tão comum, mas tão decisiva, pode ser uma das coisas mais profundas e mais comoventes possíveis.