Jackie, Spencer e Maria: A trilogia da melancolia de Pablo Larraín - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Jackie, Spencer e Maria: A trilogia da melancolia de Pablo Larraín

É possível dizer, com alguma certeza, que o século XX produziu uma grande quantidade de pessoas que se transformaram em lendas em suas respectivas áreas ou pela função social que ocupavam, especialmente mulheres. Algumas chamam mais atenção que outras, já que a existência se deu num momento histórico, ainda que dentro do mesmo século, em que as tecnologias de meio e mensagem estavam mais globalizadas. Outras estavam restritas a tempos mais analógicos e por se dedicarem a uma arte mais elitizada, logo, menos popular, mas não menos importante como marco histórico. 

Três mulheres completamente diferentes, que viveram em momentos históricos muito próximos: Jackie Kennedy, Maria Callas e Diana Spencer. Duas delas – Jackie Kennedy e Maria Callas – tiveram relações com o mesmo homem, no mesmo momento, o milionário Aristóteles Onassis, que vai desempenhar um papel muito importante na vida de Callas a certa altura de sua vida. Talvez a mais famosa e que ressoe nos ouvidos públicos até hoje seja Lady Di, cuja causa da morte ainda é envolta a teorias da conspiração. Um ponto em comum entre essas mulheres, é que todas, de alguma maneira, tiveram relacionamentos com homens extremamente poderosos, que continuamente promoviam o silenciamento dessas mulheres, mais do que a própria sociedade já fazia. Outra semelhança, é que nos cinemas essas mulheres receberam uma cinebiografia do diretor chileno Pablo Larraín, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional por No (2012)

Pablo Larraín tem uma carreira profícua. Filmes políticos que contam o terror de uma das ditaduras mais sanguinárias da América Latina, um drama psicossexual e até uma cinebiografia meio confusa do político, poeta, escritor latinoamericano e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Pablo Neruda, com a biopic Neruda (2016). O mais curioso da filmografia de Larraín, especificamente sobre seus filmes sobre a ditadura, é que ele é filho de dois políticos tradicionais da direita chilena. Isso aparentemente não muda nada na contação de histórias do diretor, já que seus filmes sobre os anos de terror são muito bem fundamentados, relativamente progressistas e apresentam a busca clássica pela normalidade democrática dos anos 1980 que rondava pela América Latina. 

Algo que se destaca na forma que Larraín conta suas histórias, tanto da ditadura, quanto das biográficas, é o recorte muito específico do tempo e da ação. Diferente da maioria das biopics feitas por Hollywood, que condensam a vida inteira de um personagem em duas horas de filme, o diretor chileno, junto aos roteiristas, escolhe momentos muito específicos para colocar em evidência. Em comum nessas narrativas, é o papel dos homens e o quanto essas mulheres organicamente orbitavam em torno deles. Talvez a exceção tenha sido Maria Callas, pois seu relacionamento com Onassis começa depois de uma carreira estabelecida, mas ele a proíbe de forma sutilmente violenta, a continuar cantando. 

Em Jackie (2016), acompanhamos a vida da ex-primeira dama dos Estados Unidos, Jackie Kennedy, personagem de Natalie Portman, momentos depois do assassinato de seu ex-marido, o ex-presidente John F. Kennedy. O luto misturado às burocracias do governo de transição para fazer o funeral, e as angústias do choque que foi ver o marido ser brutalmente assassinado se entrelaçam. Jackie gostava de ser uma mulher com os holofotes voltados a si e, obviamente, não deixaria o funeral de um dos presidentes mais importantes dos Estados Unidos passar como uma cerimônia simples e familiar. Mesmo ela negando seu viés midiático, suas ações sempre foram voltadas ao espetáculo. 

Por ser a primeira biografia hollywoodiana de Larraín, há alguns problemas de ritmo e tom. Portman nem sempre segura o sotaque e o roteiro de Noah Oppenheim é instável. O pontapé através da entrevista ao jornalista é interessante, mas acaba se repetindo em situações que já haviam sido mostradas, caindo na clássica forma, ainda que com diferenças, de marcar eventos importantes apenas para informar o espectador e fragilizar o envolvimento emocional com o sofrimento da personagem. O que salva Jackie de ser um filme fraco, é a habilidade do diretor em trabalhar as imagens, o design de produção e a fotografia que se destacam. 

Já em Spencer (2021), sua segunda biopic de grandes mulheres do século XX, acompanhamos a Princesa Diana em seu último jantar de natal da realeza britânica. A parceria com o roteirista Steven Knight é bem mais frutífera do que com Oppenheim. Knight consegue compreender melhor a intenção de Larraín e o próprio diretor parece mais entendido do que fazer com a história. Isso melhora com a grande atuação de Kristen Stewart, que parece verdadeiramente engajada na personagem, rendendo uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Spencer explora melhor as angústias e vivências de sua protagonista num ambiente altamente tóxico e hostil, repleto de pessoas que não queriam sua presença naquele espaço. Diana fazia sombra à realeza britânica e se transformou num incômodo, ao mesmo tempo, tinha certa fragilidade e resistência em competir com a estrutura da família Real.

O último lançamento do diretor é Maria (2024), que acompanha a última semana de vida da soprano Maria Callas, num drama melancólico e cheio de alucinações pelo uso de medicações e pela condição de saúde da prima donna. Interpretada por Angelina Jolie, que acredito ter sido uma boa escolha, pois, Jolie, assim como Callas, tem uma aura de diva, acerta no tom menos caricato da cantora e tem lampejos de verdadeira transparência sobre a mulher que estava interpretando. Talvez o problema de Maria tenha sido seu didatismo quase estúpido e preguiçoso que o roteirista Steven Knight deixa passar, como se o filme tivesse que ser explicado. Larraín continua fazendo o de sempre: o olhar afiado, a condução interpretativa fluida e elegante, aproveitando a grande atriz que tem em mãos para criar o espetáculo, mesmo com escolhas mais simplistas. 

A parceria com Steven Knight funcionou muito bem em Spencer, mas despencou um pouco em Maria. Talvez – e isso é mera especulação – por ser um filme da Netflix, todos os passos, inclusive o início da cantora, foram contados com algumas explicações óbvias para atingir o grande público. Pode ser também, por Maria Callas não ter sido uma mulher tão conhecida pela maioria das pessoas e por ter sido uma cantora que se dedicou a uma arte voltada às elites. Seja fato ou especulação, o filme não contribui com o desempenho de Jolie, mesmo com seu esforço fascinante e atuação belíssima. Larraín caí numa repetição de si mesmo em alguns momentos, mas Maria ainda é um dos grandes filmes de 2024.

O que marca todas essas três histórias, são mulheres perto de momentos decisivos de suas vidas, seja do fim da própria vida ou da continuidade quanto tudo parecia perdido. Além desse recorte específico, existe uma tristeza pulsante entre essas mulheres, seja pelo luto, pela morte anunciada ou pela prisão e violência psicológica de um relacionamento abusivo. Grande parte do sofrimento dessas mulheres, mas talvez especialmente Maria Callas, é ver perder o seu poder de independência e autonomia frente à própria vida. O relacionamento com Onassis ou até seu primeiro marido, não necessariamente atacaram contra sua vida, mas é por conta da violência machista de Onassis que ela tem seu sofrimento intensificado.

No caso de Spencer, corresponde também à própria violência de Diana, por ela ter descoberto a traição de Charles e por aguentar as inúmeras regras rígidas e draconianas da família Real, além das chantagens em torno do divórcio. Afora esse sofrimento interno, o envolvimento dos tabloides britânicos, revistas e programas de fofocas, intensificam a falta de privacidade e escolha da princesa frente ao sensacionalismo barato e rasteiro, muitas vezes intensificados pela família Real. Jackie sofreu depois da morte do marido e era importante buscar uma reinvenção, um outro tom, enquanto vivia o luto da tragédia. O que seria dela sem Kennedy, já que seu título oficial era ser a primeira-dama dos Estados Unidos? Jackie, apesar da tristeza, estava na busca pela vida, Maria e Diana estavam na busca da morte, e seria iminente.

Larraín já demonstrava o interesse por situações complexas de grande impacto emocional. É o caso de Post-Mortem (2010), seu segundo longa-metragem, em que temas relacionados à ditadura chilena se misturam com um sofrimento dos personagens frente a recortes de tempo e situações fortemente opressivas. O trabalho com os roteiristas produziu um jeito de contar essas histórias, em que a tristeza é a linha narrativa geral e no subtexto uma melancolia latente que acompanha a vida dessas mulheres. A melancolia é um sentimento mais intenso que a tristeza, pois, a tristeza se compreende como um sentimento que atravessa o sujeito, mas com tempo limitado, a melancolia, de forma simplificada, pode ser lida como uma tristeza crônica, recorrente, que não se confunde com a depressão.

Talvez o autor que melhor entendeu a melancolia e suas facetas na história da arte moderna, tenha sido Gustave Flaubert, com o livro considerado o “romance dos romances”, Madame Bovary, lançado em 1856. Falei melhor sobre Madame Bovary no texto sobre o filme As Virgens Suicidas (1999), quando analisei a filmografia da diretora Sofia Coppola. No livro de Flaubert, Bovary se vê angustiada sobre sua posição feminina frente a dois homens, sendo que queria apenas viver a vida dos romances banais que lia na época. O final é trágico. Ela se suicida, sendo esse ato uma realização da própria vida, ainda que de forma negativada. Bovary busca a autoralidade da vida, pois sempre viveu presa no lugar definido, à época, do que seria ser mulher, um suposto sujeito, já que essa posição não se dá de barato. Em linhas gerais, a mulher se vê atravessada pelo olhar do outro, justamente por sempre se ver deslocada da posição de sujeito, pois ser sujeito, requer o reconhecimento com espaço para a autoralidade subjetiva e de desejo.

Larraín claramente não é Flaubert, mas ele consegue compreender as angústias dessas mulheres e, o mais interessante de tudo, é a capacidade em ver a beleza dentro da tristeza, dentro da melancolia. A melancolia costuma ser um sentimento explorado pelo lado opressivo, que de fato é, mas pouco explorado pela capacidade inventiva do sujeito em criar mecanismos, delirantes ou não, para se retirar dessa posição. É uma constante reinvenção do imaginário e até do simbólico, como saída ou como defesa – as vezes de si mesmo, as vezes do outro. Todas as personagens biografadas pelo diretor, de maneira mais ou menos inventiva, conseguiram produzir espaços internos para fugir de uma situação opressora. E em linhas gerais, a mulher não parece estar sempre construindo saídas criativas frente à opressão? A beleza na representação da tristeza ou do sofrimento dessas mulheres, acaba sendo um apelo estético que contribui para eternizá-las – não que elas precisassem -, e como uma possibilidade de maior alcance de suas personalidades para além do que a História reservou. 

O que mais encanta nas biografias das mulheres tristes e melancólicas de Larraín é a gentileza com que ele retrata essas mulheres tanto tempo depois do tempo vivido. Funciona como homenagem e funciona como representação de uma vida cheia de nuances, tentando traduzir o sofrimento que elas vivenciaram à época, mesmo que para isso uma dose de ficção seja incorporada. Assistir a trilogia não oficial dessas mulheres, é também perceber que pouca coisa mudou, da opressão à tristeza, apesar de alguns avanços frágeis, que em sua maioria são mais fáceis de destruir – como estamos acompanhando agora com o retorno de Donald Trump ao poder – do que construir. A beleza marcada pelo que os olhos esteticamente julgam, nem sempre está presente num estado de profunda catarse sentimental, mas o diretor, roteiristas e atrizes, parecem verdadeiramente inspirados e obcecados em colocar na tela o máximo de angústia, solidão e encanto, mesmo que seja para contar de uma vida com mais tragédias do que alegrias vividas.

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