Eu Cinéfilo #80: Emilia Pérez: uma bagunça disfarçada de cinema
Emilia Pérez se vende como um musical ousado, uma mistura de thriller criminal, drama social e novela exagerada, mas, na prática, o filme de Jacques Audiard é um experimento caótico que falha em quase todos os aspectos. Com um roteiro desorganizado, uma direção que não sabe para onde ir e uma trilha sonora questionável, o longa se torna um espetáculo que mais confunde do que emociona. E o pior: ao invés de ser um avanço na representação trans no cinema, ele reforça estereótipos ultrapassados e se torna um desserviço à comunidade que busca dignidade e visibilidade.
O filme parte de uma premissa que poderia ser interessante: um chefão do tráfico mexicano decide largar sua vida criminosa para passar por uma transição de gênero e se tornar Emilia Pérez. No entanto, ao invés de tratar essa jornada com profundidade ou respeito, Audiard opta por um tom errático, que mistura elementos de farsa com momentos de suposta emoção, resultando em uma experiência desconjuntada.
A protagonista, interpretada por Karla Sofía Gascón, não tem uma construção de personagem consistente. Ora ela é uma figura trágica e reflexiva, ora se torna uma caricatura que reforça a ideia absurda de que transicionar automaticamente transforma alguém em uma pessoa mais sensível e maternal. O roteiro ainda insiste em diálogos expositivos e cenas que não contribuem para a progressão da narrativa, tornando as quase duas horas de filme um verdadeiro teste de paciência.
Se a intenção era criar um filme que celebrasse a transição e a identidade de gênero, Emilia Pérez falha miseravelmente. O longa perpetua a noção antiquada de que a transição é apenas uma mudança externa e que a identidade de uma pessoa pode ser resumida a estereótipos de masculinidade e feminilidade. Há momentos em que Emilia se vê dividida entre o “homem” que foi e a “mulher” que deseja ser, algo que poderia ser explorado com nuances, mas que, no filme, apenas reforça a ideia de que pessoas trans vivem em um eterno limbo identitário.
Além disso, a cena em que médicos cantam sobre vaginoplastia como se fosse uma receita de bolo não só é insensível como expõe o desconhecimento do diretor sobre o assunto. A tentativa de usar o humor e a música para abordar um tema tão delicado soa ofensiva e desnecessária.
A trilha sonora do filme é um desastre por si só. O musical, que deveria ser um dos grandes trunfos da obra, acaba sendo um de seus maiores problemas. As canções surgem de forma abrupta e desconfortável, sem qualquer transição natural entre os diálogos e os números musicais. Pior ainda, as letras variam entre o bizarro e o genérico, com músicas que tentam ser profundas, mas acabam soando ridículas.
Um dos exemplos mais constrangedores é La Vaginoplastia, que, além de ter um refrão insensível, é acompanhada por uma coreografia mecânica e sem graça. Da mesma forma, El Mal, que tenta criticar o sistema corrupto, parece saída de um musical infantil mal dirigido. Até mesmo as canções mais emotivas são prejudicadas por arranjos previsíveis e interpretações forçadas.
Jacques Audiard já provou ser um diretor competente em outros projetos, mas aqui ele parece perdido. O tom do filme muda constantemente, oscilando entre drama, comédia e sátira, sem nunca se estabelecer de fato. A montagem desconexa faz com que algumas cenas pareçam pertencer a filmes diferentes, e a falta de coesão prejudica qualquer tentativa de criar envolvimento emocional.
A fotografia, por sua vez, é incrivelmente sem inspiração. Para um filme que se propõe a ser extravagante e operístico, Emilia Pérez tem uma estética visual decepcionantemente simplória. As cores são lavadas, os enquadramentos são burocráticos e não há nada que realmente se destaque. Nem mesmo as sequências musicais apresentam criatividade visual, parecendo mais um show de talentos mal produzido do que um grande espetáculo cinematográfico.
Outro problema grave do filme é a forma como ele trata o México e sua cultura. Filmado na França, com cenários que não convencem, Emilia Pérez apresenta uma versão genérica da Cidade do México, que mais parece uma vila fictícia saída de um teatro amador. Além disso, os sotaques dos atores não seguem qualquer consistência, o que contribui para a sensação de artificialidade.
O filme ainda se aproveita de tropos batidos sobre narcotráfico sem adicionar qualquer camada de complexidade. Em vez de trazer uma abordagem inovadora ou respeitosa, Audiard reduz o país a um clichê, onde todos parecem estar envolvidos com o crime e onde a única forma de redenção é por meio da violência ou do sofrimento extremo.
Se há algo que salva Emilia Pérez de ser um fracasso completo, é a atuação de Zoe Saldaña. Sua personagem, Rita, é a única que consegue gerar algum tipo de empatia. Mesmo em meio a um roteiro fraco e uma direção desajeitada, Saldaña entrega uma performance sincera e carismática, conseguindo passar emoção e profundidade onde o filme não dá espaço para isso.
Infelizmente, sua presença não é suficiente para redimir os muitos problemas do filme. Ela brilha sozinha em meio ao caos, mas não consegue carregar o peso de um projeto tão mal executado.
Emilia Pérez poderia ter sido um filme marcante e revolucionário, mas, no final das contas, se tornou um desastre de grandes proporções. Com um roteiro inconsistente, uma abordagem irresponsável sobre a experiência trans, músicas ruins e uma estética preguiçosa, o filme desperdiça seu potencial e entrega um resultado frustrante.
O longa tenta ser provocador, mas só consegue ser confuso e, por vezes, desrespeitoso. Ao invés de trazer uma narrativa inovadora, acaba reforçando estereótipos e alienando o público que deveria representar. Salva-se apenas Zoe Saldaña, que faz o possível para dar dignidade ao projeto, mas nem ela pode impedir Emilia Pérez de ser uma grande decepção.
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Texto escrito por: Sérgio Zansk