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Anora: um conto de fadas hiper-realista

Anora, novo filme do diretor e roteirista Sean Baker, disponível nos cinemas brasileiros, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e concorrente a 6 prêmios no Oscar, incluindo Melhor Filme, Roteiro Original, Direção, Atriz para Mikey Madison e Ator Coadjuvante para Yura Borisov, pode ser traduzido como um conto de fadas hiper-realista, que pouco dá espaço para idealizações fantasiosas e termina basicamente no mesmo lugar que começa, sendo esse o grande trunfo e beleza frente às tragédias da vida cíclica e pouco esperançosa de sobreviver nos Estados Unidos do século XXI. Embora a ideia de conto de fadas hiper-realista pareça uma contradição, o que em partes é, Sean Baker articula sua história transitando entre gêneros cinematográficos, montando um quebra-cabeça que, pela própria narrativa, é em partes também contraditória.

Anora ou Ani, como gosta de ser chamada, numa performance totalmente viciante de Mikey Madison, é uma dançarina erótica e profissional do sexo que trabalha num clube de strippers em Manhattan, Nova Iorque. Leva uma vida monótona dentro do trabalho, até que encontra o jovem irresponsável e extremamente rico, Ivan, vivido por Mark Eidelstein. Ivan é filho de oligarcas russos, está a passeio em Nova Iorque e, por Ani entender russo – sua avó só falava russo -, ela é designada a entreter Ivan e seus amigos. Dessa relação estritamente profissional, surge uma proposta aparentemente irrecusável: Ivan pede a Ani para que ela seja sua acompanhante exclusiva no tempo que ele ficará nos Estados Unidos. Tudo muda quando Ivan a pede em casamento.

Os contos de fadas perambulam pela humanidade a séculos. Seguem sempre a mesma definição e já ganharam diversas roupagens para todos os gostos e idades. O conto de fadas precisa de uma protagonista que passará por provações, será apadrinhada por alguém com superpoderes e terá de aprender algo novo, uma lição de moral, para ser salva pelo príncipe encantado. Em Anora, a mesma dinâmica acontece: uma mulher que sofre com a vida que leva, espera a chegada de um príncipe encantado para tirá-la do sofrimento e então viverem felizes para sempre. Por razões óbvias, um conto de fadas não se realizaria no capitalismo, logo, se faz necessário contar outra narrativa que englobe o mesmo tom discursivo para o imaginário, para que o conto de fadas continue a fazer sentido na cultura.

Por mais que seja possível contar um conto de fadas no capitalismo, caso do excepcional Uma Linda Mulher (1990), não é por esse caminho que Sean Baker trabalha. Vindo do cinema independente estadunidense, seus três filmes anteriores a Anora, Tangerine (2015), Projeto Flórida (2017) e Red Rocket (2021), trafegam pela periferia do país, com personagens também periféricos e fora da vida tradicional da classe média tão bem representada pela indústria hollywoodiana – que às vezes parece viver num conto de fadas. Todos os seus personagens têm uma relação muito próxima com o que mais fazem deles humanos: o sexo. Falaremos disso mais adiante. Antes do sexo, Baker parece querer discutir, aos moldes do entendimento estadunidense, os conflitos de classe de/entre seus personagens.

O que marca Anora, especialmente, é a forma como o conto de fadas idealizado por Ani, só seria possível com sua ascensão social. Ela tão bem sabe disso, que cobra seu patrão no clube de stripper, seguro saúde e vale alimentação. A ascensão social é a “magia” do conto de fadas estadunidense. O príncipe encantado, representado por Ivan, chega, salva e promete a paz do casamento tradicional, sendo a saída milagrosa frente à solidão e à tristeza que a acompanham. O “sonho americano”, nada mais é do que a ideologia do conto de fadas, adaptado aos tempos modernos do capitalismo, que utiliza a ascensão social como função imaginária do escape de um estado de opressão. É a partir disso, que os conflitos de classe se intensificam, pois, a ascensão social, não garante a continuidade do sonho, muito menos a estabilidade do “felizes para sempre”.

Sean Baker trabalha com o realismo em todos os seus filmes. Todos seus personagens, sem exceção, buscam das formas mais variadas possíveis, encontrar saídas para o estado que se encontram. Quando Ivan têm notícias oficiais de que seus pais desaprovam o casamento, ele foge e abandona Ani. Nesse momento, ela vê o sonho ser completamente destruído em sua frente. Apesar de apresentar resistência nos primeiros momentos, tudo seria em vão pois, o poder, o dinheiro e as diferenças de classe, são sempre mais importantes para a manutenção do status quo do que o amor ou paixão que supostamente possam existir. Ani começa a descer os degraus do sonho encantado da ascensão social e não para até voltar para onde começou.

Nesse momento, em que Ani está completamente sem reação, por ver o sonho se destruindo e ela sendo obrigada a ajudar na destruição, Baker nos apresenta Igor, numa performance muito interessante de Yura Borisov. Igor se transforma no ego auxiliar de Ani, enquanto ela não consegue mais reagir frente a violência que está submetida. Numa performance muito contida, quase contraditória pois, em momentos anteriores, ele estava contendo Ani de forma agressiva, ele se transforma na percepção dela frente ao absurdo. É a partir da entrada de Igor e outros capangas, que o filme muda de tom, apostando no screwball comedy, gênero clássico dos anos 1930. Ani se vê completamente perdida e escanteada pois, a ilusão de alguma autonomia que ela nutria, simplesmente se esvai.

Baker renuncia a qualquer romantismo nas relações de Ani. Ela se torna refém dos capangas do pai de Ivan, e Igor, imigrante recém-chegado aos Estados Unidos, busca uma identificação de classe com ela. Anora e Igor, assim como Toros (Karren Karagulian) e Garnick (Vache Tovmasyan) são imigrantes, de gerações diferentes e compartilham o mesmo lugar de opressão frente ao poder das oligarquias, tanto russas quanto norte-americanas. Ani também está no chão de fábrica, ela é, assim como eles, uma operária que prestou um serviço, nada além disso. O diretor tanto sabe disso que, todas as cenas de sexo entre Ani e Ivan são completamente protocolares, rápidas e funcionais. Nunca houve paixão, era apenas um contrato de trabalho.

Nos filmes de Baker, o sexo firma uma posição claramente humana, ausente de idealizações ou romantismo. O sexo é o meio para algo, inclusive para a sobrevivência no capitalismo moderno, e o mais belo cinematograficamente desse contexto, é que Sean Baker jamais coloca uma lupa moral frente às ações e meios que seus personagens recorrem para sobreviver na periferia daquele país. Sem moralidades, guiados por instintos de ascensão social, para concretizar o conto de fadas. O sexo como trabalho, obviamente carrega alguma contradição, inclusive sobre a liberdade e não objetificação, mas, assim como a família de Ivan vê Ani como uma trabalhadora objetificada, ela também sabe do lugar claramente exploratório que a América faz questão de colocá-la.

A classe social e as idealizações e desígnios de sucesso, sejam estadunidenses ou russos, não são correspondentes e jamais serão. Anora nada mais é do que a simples representação da disparidade de classes como pontapé inicial para a destruição de qualquer ideia de representação das Disney Princess na vida próxima do real, que é onde Baker mira sua lente. Enquanto a miragem for o American Dream, a forma e o meio, inclusive o sexo, são meros objetos intermediários para a chegada do “felizes para sempre”. Ani não teve o “felizes para sempre” que sonhou e terminou no mesmo lugar que começou, com uma ajudinha que só a identificação de classe é capaz de fazer.

Anora termina com uma das cenas mais fortes do último ano. Quando tudo chega ao fim, seja para recomeçar ou mudar, ainda é preciso espaço para sentir, mesmo com sua postura mista de raiva e tristeza. O fim mais melancólico do que se imaginava, só reforça a representação do lugar agridoce e pouco inspirador do cotidiano de Ani, abarrotado por certa apatia em suas ações. Anora pode ser lido como uma biografia recortada da vida banal da classe pobre estadunidense. O que o roteirista, diretor e montador Sean Baker, ao olhar para sua filmografia sempre fez questão de contar, é que para boa parte da população norte-americana, a promessa do conto de fadas é mais interessante e infinitamente tentadora do que alguma revolução do imaginário, em que as contradições da cultura são postas em análise. O real continua hiper-real, mas disfarçado de conto de fadas e sem lição de moral, apenas melancolia.

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