Analisando Karhryn Bigelow: Detroit em Rebelião (2017) e a Guerra Doméstica
Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa série de cinco textos serão analisados os filmes: Estranhos Prazeres (1995), Guerra ao Terror (2009), A Hora Mais Escura (2012) e Detroit em Rebelião (2017). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Kathryn Bigelow.
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Da virada do século até hoje, Kathryn Bigelow olhou seu país como o estrangeiro em terras estrangeiras. Foi assim com K-19: The Widowmaker (2002), Guerra ao Terror e A Hora Mais Escura. Nesse meio tempo, o país que buscava seus inimigos externos, pouco se preocupou com os inimigos internos que estavam se criando ou voltando à luz do dia. Coincidência ou não, Detroit em Rebelião aparece no momento de grande convulsão social, e olhar para dentro pareceu necessário. Existe um gosto interessante da cineasta em contar sobre a história estadunidense com suas guerras internas. Fato semelhante esteve no primeiro filme que analisamos nesta série, em que a diretora abordou no subtexto os protestos raciais de Los Angeles em 1992. A questão racial nos Estados Unidos, diferente do Brasil, parece sempre ser uma panela de pressão prestes a explodir. Em 2017, ano de lançamento de Detroit, uma amostra do que seriam os protestos de 2020 pela morte de George Floyd, já tomava contornos.
Detroit, uma das maiores cidades do estado de Michigan, hoje conhecido como um dos estados do “cinturão da ferrugem” por sua decadente indústria automobilística, na época dos protestos em 1967, era uma cidade fervilhante e com uma indústria forte, porém, os sinais de estabilidade e crescimento não atendiam os anseios da população. Conhecido como o mais “longo e quente verão de 1967”, na noite do dia 23 de julho, casas e comércios foram queimados, saqueados ou depredados. Após uma batida policial em um bar sem licença para funcionar, 82 pessoas foram presas por estarem comemorando o retorno de dois soldados da guerra do Vietnã. A batida policial revoltou a população civil que já estava descontente com as forças policiais por sua frequente abordagem violenta e racista. Os protestos duraram de 23 a 28 de julho daquele ano, e no dia 25, o “incidente do Algiers Motel” daria outro contorno a um dos maiores protestos raciais da história dos Estados Unidos.
A ANATOMIA DA VIOLÊNCIA
Detroit em Rebelião, dirigido por Kathryn Bigelow e mais uma vez roteirizado por Mark Boal, começa com uma animação explicando didaticamente como a cidade de Detroit ganhou proporções financeiras e sociais expressivas. Em 1910, após um fluxo migratório, muitas pessoas negras que majoritariamente viviam nos estados do sul, foram em busca de empregos nos estados do norte, pois a região passava por uma grande revolução tecnológica industrial, especialmente automobilística. Apesar dos primeiros anos serem de grande bonança, a segregação racial, marco fundamental para entender o contexto racial dos EUA, era, e ainda é fortemente evidente, especialmente na questão habitacional.
Embora a cidade tenha conseguido relativa distribuição de renda e muitas pessoas negras serem de classe média e com boas condições de vida, o preço dos alugueis ou compra de casas sofreu enorme especulação. Além disso, não é de se desconsiderar a diferença brutal de tratamento pela polícia. O fim da segregação racial se deu em 1964, poucos anos antes dos episódios do verão de 1967. As forças de segurança, especialmente a polícia local, contavam com um efetivo de 95% de pessoas brancas, para uma população majoritariamente negra, à época 40%. Diversos relatos de violência policial e tratamento diferenciado, que já eram motivo de protestos menores anos antes dos protestos, era o principal problema apontado pelos moradores.
É nesse cenário que a diretora Kathryn Bigelow nos coloca já de início. Logo após a animação, somos surpreendidos com a batida policial em um bar não legalizado chamado “Blind Pig”. Sem aparentes motivos para prender 82 pessoas, vizinhos ao verem as movimentações saíram para certificar o ocorrido. Após o estranhamento entre população civil e polícia, já em um ambiente altamente inflamado, é dado início a um dos protestos mais intensos e violentos da história norte-americana, que só seria superado 25 anos mais tarde em Los Angeles em 1992. A segregação racial, aliada a dificuldades de melhores condições e tratamento humano, já eram tema fervilhante na sociedade, a invasão do bar, foi o estopim de uma conjuntura social completamente instável.
Os protestos duraram cinco dias, com um saldo de 43 mortes, 1189 feridos, 7200 pessoas presas e 400 prédios destruídos. Bigelow e Boal, se concentram na primeira hora em apresentar todo o cenário de destruição, amotinação e violência policial na cidade. Tudo isso para chegar no que realmente era a história que queria ser contada, o “incidente do Algiers Motel”. Durante todo o tempo, a câmera quase documental da diretora, utilizada à exaustão em Guerra ao Terror, continua atuando aqui para tentar não perder nada. Concentrado em vários personagens dentro do anexo do motel Algiers, os personagens da banda The Dramatics, Larry Reed (Algee Smith) e Aubrey (Nathan Davis Jr.), no ex-soldado Greene (Anthony Mackie), e nos residentes do motel, Carl (Jason Mitchell), Lee (Payton Alex Smith), Fred (Jacob Latimore) e nas únicas duas mulheres brancas, Julie Ann (Hannah Murray) e Karen Malloy (Kaitlyn Dever).
Os protestos eram tão intensos que a polícia local era insuficiente para dar conta de tamanha confusão. O prefeito de Detroit convocou a Polícia Estadual e a Guarda Nacional para conter o alvoroço. Era um estado completo de suspensão e paranoia, e as polícias estavam completamente despreparadas para lidar com o cenário. Carl, numa simples brincadeira, dispara com uma arma de espoleta no rumo dos policiais que estavam de vigia à distância. Esse movimento fez com que os policiais entrassem em modo de combate e fossem até o hotel descobrir quem causou o disparo. Antes de invadir o hotel, fizeram disparos indiscriminados para atingir quem quisesse. Após invadir o hotel, o soldado Krauss (Will Poulter) percebeu que Carl estava fugindo e disparou em suas costas e forjou a cena colocando um canivete a seu lado. Após isso, de forma violenta, todos os hóspedes do anexo do hotel são colocados de frente a parede no andar de baixo e são agredidos, torturados e três são assassinados pelos policiais.
Para além das vítimas do assassinato no motel Algiers, o filme nos apresenta antes, três policiais responsáveis pela tortura do hóspedes: os oficiais Krauss (Will Poulter), Demens (Jack Reynor) e Flynn (Ben O’Toole). Parte da tropa radicalizada, na primeira hora do filme, Bigelow faz questão de mostrar a forma covarde que Krauss assassina um homem negro pelas costas sem que oferecesse risco algum. Chamado pelo detetive, Krauss não leva nenhuma reprimenda grave. Quem aparece também “do lado” das forças policiais, é o segurança negro Dismukes (John Boyega), que estava vigiando uma loja nos arredores do hotel. Para tentar apaziguar a violência dos policiais, vai até o hotel e presencia boa parte dos acontecimentos.
Depois dessa enorme introdução, os próximos quarenta minutos serão concentrados exclusivamente na tortura, agressão e jogo de vida ou morte com os 6 homens negros e as duas mulheres brancas, reféns dos três policiais brancos. Krauss é o mais radical e perverso de todos. Além de agredir todos, sem exceção, e despir uma das mulheres, Krauss e Flynn, se unem para obter a confissão de quem teria feito o disparo e onde estaria a arma. Utilizando o que chamavam de “tática de interrogatório”, que consistia em levar uma das pessoas para um quarto, dar um tiro no chão ou na parede para obter a confissão e assustar os outros reféns do lado de fora, Krauss e Flynn aterrorizam e torturam perversamente todos os jovens, sem que a Polícia Estadual ou a Guarda Nacional intervenham.
Após o policial Demens assassinar Aubrey com um tiro à queima roupa, sem que Aubrey oferecesse qualquer resistência, tudo começa a dar errado. Krauss entra em desespero e começa a soltar um por um, mas garantindo que nenhum deles contasse sobre o acontecido. Quem infelizmente não nega o acontecido frente a Krauss é o jovem Fred que, ao confrontar Krauss sobre o assassinato de Carl, é brutalmente assassinado com dois tiros à queima roupa. Toda essa sequência de acontecimentos, conta com a câmera sempre muito atenta e propositalmente confusa de Bigelow que tenta capturar o máximo de informação que era possível, sem se perder no terror objetivo do que estava acontecendo.
Chama a atenção, a excelente pesquisa feita por Mark Boal para montar esse roteiro histórico que, ao mesmo tempo que nos situa no contexto macrossocial, com muita claridade e eficiência nos leva para o micro espaço do hotel. Os 40 minutos de tortura para obter confissão a qualquer custo, se assemelha com a mesma dinâmica de A Hora Mais Escura. Boal, para dar conta de preencher os vazios de sua história, até tenta criar uma suspeita curiosa sobre os 45 minutos finais que são concentrados no julgamento dos policiais. Claramente protocolar, tanto o julgamento, quanto a forma que Bigelow filma o tribunal, pouco sai do lugar. Os policiais são absolvidos pelo júri popular. Algumas reportagens posteriores, contam que o júri teria sido instruído pelo juiz a votar contra a culpabilização penal dos policiais e do vigia Dismukes.
Todos saem traumatizados, especialmente Larry. Além de perder o parceiro de banda, Larry, que era um dos grandes vocalistas com seu grupo, os The Dramatics, não conseguiu voltar a cantar. Sua conclusão extremamente melancólica, mas filmada com sensibilidade por Bigelow, que tenta enquadrá-lo imageticamente numa lógica mais estática, termina com ele cantando em um coral de igreja. Larry pode ser lido como o protagonista do filme, embora essa função seja dividida muito bem com o policial Krauss, mas esse, após a absolvição desaparece – a história real mostra que ele foi desligado da corporação e se ocupou com outros afazeres. Larry, cansado de cantar para brancos, vê na igreja do bairro sua única salvação naquele momento. A igreja junto aos seus, foi o lugar que ele encontrou para criar sentido e fazer o que mais gostava, cantar para uma plateia que verdadeiramente quisesse ouvi-lo.
UM PROBLEMA QUE SE REPETE
Os Estados Unidos têm um longo histórico de violência policial contra pessoas negras, é também frequente diversas manifestações e protestos, às vezes mais ou menos violentos, contra a brutalidade policial. Como mencionado, Kathryn Bigelow passou por dois grandes eventos do século XX, Detroit em 1967 e Los Angeles em 1992, misturado com scifi em Estranhos Prazeres. Faz parte dessa jornada, em ambos os filmes, a absolvição dos policiais, mas em contextos diferentes. Diferente de A Hora Mais Escura em que diretora e o roteirista escolhem certa neutralidade para retratar os eventos, em Detroit em Rebelião, pelo menos durante a sessão de tortura feita pelos policiais, tanto Bigelow quanto Boal, não se abstém de se posicionar sobre o terror vivido pelos jovens na noite de 25 de julho de 1967.
Seria fácil se abster, embora a situação claramente não contenha nenhuma evidência de equivalência. Disparar com uma arma de espoleta não justifica, de forma alguma, a tortura e assassinatos em seguida. Na verdade, por mais que seja uma situação de risco e perigo, as forças policiais devem evitar o uso de força letal. Nessa situação, todo o evento em si parece ter sido montado pelo mero prazer do policial Krauss e de seus colegas. É angustiante acompanhar 40 minutos de tortura e agressão. Muito dessa angústia, é mérito da própria diretora que consegue, ainda que um tanto distanciado, nos fazer sentir o que aqueles jovens estavam sentindo. Essa angústia não passa depois dos julgamentos. Depois de presenciarmos tamanha violência, vê-los absolvidos é um desastre psíquico, tanto para o espectador – pelo menos aqueles que ainda tem um pouco de decência – e para aqueles personagens.
Pouca coisa mudou ao longo dos anos que se passaram. Coincidência ou não, o filme foi lançado 50 anos depois dos protestos. Em 2017, na cidade de Charlottesville no estado da Virgínia, grupos antirracistas entraram em conflito com grupos neonazistas e supremacistas brancos que marchavam carregando símbolos dos estados confederados, tochas – numa clara alusão a Ku Klux Klan – e suásticas. O grupo de extrema-direita, segundo uma reportagem da BBC, gritava “Vidas brancas importam”. Ainda segundo a reportagem, uma pessoa favorável à marcha dos supremacistas, atropelou o grupo de manifestantes antirracistas. Uma pessoa morreu e dezenas ficaram feridas.
Analistas à época, diziam que grupos de extrema-direita se sentiam mais autorizados a fazer passeatas e manifestações racistas, antissemitas e homofóbicas após a vitória de Donald Trump. Em 2020, após o assassinato de George Floyd, ainda no primeiro governo Trump, milhares de pessoas saíram as ruas para protestar contra a violência policial. Aliado incondicional das forças policiais e de nacionalistas extremados, Trump chegou a chamar os protestos pelo fim da violência policial de “terrorismo”. Em 2020 ele perdeu a eleição, muito pelo voto das mulheres e da população negra. Curiosamente, em 2024 Donald Trump foi eleito para um segundo mandato, com um leve aumento de votos dos homens negros e dos latinos – alvos de discriminação e preconceito pelos nacionalistas brancos. Uma das grandes contradições da vida em sociedade e da vida política.
KATHRYN BIGELOW E AS GUERRAS INTERNAS
Diferente dos outros trabalhos de Kathryn Bigelow, em especial com o roteirista Mark Boal, em Detroit em Rebelião, há pouco cuidado com os personagens e mais com o contexto. É difícil distinguir em alguns momentos quem são todos os jovens, embora fique claro o que aconteceu. Parece haver uma confusão, e não sei se proposital, em tratar do evento de maneira quase separada, muito pela falta de conclusão oficial do caso e pelo final melancólico, injusto. A falta de provas e dificuldade dos próprios jovens apontarem com clareza o que aconteceu, pode ter confundido também a própria narrativa de Boal.
Alguns personagens são deixados de lado, embora ao final do filme apareça um texto informando qual o destino de cada um. Os policiais após a absolvição não são mais mencionados. A escolha interessante e comovente de focar no trauma de Larry, ainda que por pouco tempo, dá a dimensão de tudo o que aconteceu. O segurança Dismukes trabalhou como consultor do filme e esteve presente no set de filmagem ao lado de Bigelow. Em uma entrevista dada ao jornal matinal CBS This Morning, Anthony Mackie menciona que não buscou o oficial do exército que seu personagem é baseado para saber sobre sua história e diz que essa tarefa ficou a cargo do roteirista. Em vários momentos, existe a sensação de que as vítimas reais pouco quiseram se envolver na produção do filme, e isso é compreensível.
Kathryn Bigelow parece ter se envolvido pouco na divulgação do filme, mesmo sendo um trabalho notável e por ela repetir parcerias frutíferas, como o diretor de fotografia Barry Ackroyd que trabalhou com ela em Guerra ao Terror, e com Jeremy Hindle responsável pelo design de produção de A Hora Mais Escura. Ambas as parcerias merecem destaque. O ambiente constantemente iluminado produzido por Ackroyd cria a sensação de que tudo precisava ser visto e capturado pelas lentes e câmeras bisbilhoteiras da diretora, e a reconstituição de época feita por Hindle, facilmente nos transporta para a Detroit opulenta da década de 1960.
Não há razões claras sobre o que houve com o lançamento de Detroit em Rebelião. Seu desempenho na bilheteria foi sofrível. Custou muito mais do que lucrou. Esnobado de todas as premiações e sem um grande estúdio por trás, o circuito foi muito reduzido e não deu as caras em nenhuma premiação televisionada. É possível argumentar, e faço parte desse coro, que Kathryn Bigelow talvez tenha soado repetitiva. Para quem não gostava do estilo da diretora, com certeza esse não é um bom recomeço. Os mesmos erros de A Hora Mais Escura se repetem, especialmente a falta de ânimo quando é preciso tratar do desenvolvimento completamente anticlimático.
A ausência de um personagem-âncora que sustente com firmeza o filme e faça eco na lógica obsessiva da diretora trabalhar, talvez tenha sido o grande deslize de Detroit em Rebelião. Kathryn Bigelow parece precisar de alguma personagem que seja tão forte quanto ela para carregar toda sua potência criativa e projetiva. Para esse tipo de filme, em que os personagens são muitos e todos são cruciais para a formação da história, a falta da centralidade narcísica de um personagem, pode ter prejudicado a contação de uma história mais coesa e menos faltante. A verdade é que as excelentes características de Bigelow estão aqui, e as pouco virtuosas também.