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Crítica: Coringa: Delírio a Dois

Ficha técnica – Coringa: Delírio a Dois
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Scott Silver, Todd Phillips, Bob Kane
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 3 de outubro de 2024
Elenco: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Brendan Gleeson, Catherine Keener, Steve Coogan, Zazie Beetz.
Sinopse: O comediante fracassado Arthur Fleck conhece o amor de sua vida, Harley Quinn, enquanto está encarcerado no Arkham State Hospital. Os dois embarcam em uma desventura romântica condenada.

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Isso é entretenimento. Será mesmo?

O texto contém spoilers do filme.

Saí da sessão de “Coringa: Delírio a Dois” atordoada. Um drama pesado, um romance conturbado, um tribunal esquisito e um musical preguiçoso. Adjetivar os momentos pelos quais Todd Phillips passa nesse filme foi a primeira espécie de conclusão sobre a obra à qual consegui chegar após dirigir uns 10km até a minha casa no caminho de volta. A segunda, com a cabeça já no travesseiro, foi como Philips pareceu dar o maior foda-se do mundo para mim e para o seu filme inteiro e como, no fim das contas, o principal tema da continuação do Leão de Ouro de Veneza de 2019 é um verdadeiro protesto que, de maneira consciente e radical, contrapõe-se às expectativas do público.

Isso explica o meu fascínio pelas ideias do longa, pulsantes na minha cabeça até agora, e também explica a reação negativa do público e de muitos críticos. Para mim, é fascinante que mesmo com um sucesso estrondoso, com um orçamento obsceno e um elenco estelar (olha eu, adjetivando mais uma vez), o diretor preferiu se impor diante das expectativas e fez o que bem queria, ciente do fato de que o resultado tinha o potencial de desagradar tanto gregos quanto troianos. Existe algo sobre a sede por assumir riscos que me faz admirar ainda mais os acertos e as falhas que o filme apresenta.

Primeiramente, sobre seus pontos cegos: Todd Phillips não sabe dirigir um musical, verdade seja dita. Se tem algo ruim em “Coringa: Delírio a Dois”, com certeza é a forma como o diretor conduz os números musicais sem qualquer imaginação. A câmera é estática, sem graça, não há qualquer impacto. Para piorar, os devaneios de Fleck/Joker são usados para justificar esses momentos, o que poderia ser uma expressão de dor e paixão tão potente para a complexidade do personagem, é um aspecto sobre o qual o filme parece ter vergonha de incorporar. Faltou abraçar com mais força o aspecto central em torno do qual foi vendido.

Isso nos leva à segunda grande falha do filme, a personagem subaproveitada de Lady Gaga, essa espécie de Arlequina (embora não seja) que falha em convencer o espectador de sua importância para Fleck de tão mal aprofundada é a personagem. Meu problema neste caso não reside na atuação de Gaga, ela claramente faz o que pode diante do papel que lhe é apresentado, e sim na abordagem de um estereótipo da “garota maluca” e só, cujas motivações mal sabemos ou sentimos. Na constituição desse romance deturpado, isso não só não basta como atrapalha a dinâmica do casal.

A terceira e última grande falha do filme reside na articulação dos seus diferentes momentos. Ao assumir riscos, Phillips não sabe exatamente o que fazer diante de tantos subgêneros pelos quais caminha e, frequentemente, tem problemas de ritmo. A inabilidade transparece para o espectador na longa duração, pois em 138 minutos de filme poucos são os momentos em que de fato algum acontecimento importante domina a tela.

Essas são as falhas que impedem o longa de alcançar o patamar de obra-prima para mim. Todavia, existem imensos acertos que, por sua vez, impedem o filme de decair abaixo do que eu consideraria bom. Ou até mesmo ótimo.

Como advogada que sou, “Delírio a Dois” me levou a um tema recorrente no direito penal contemporâneo: o sensacionalismo midiático e a influência da mídia na espetacularização dos crimes de grande repercussão. Muitos estudos nos últimos anos dentro do campo penal se debruçam sobre esse tema e seus desdobramentos, da televisão às redes sociais, cujos exemplos vão do caso Eloá no Brasil ao caso Johnny Depp e Amber Heard nos Estados Unidos.

Em crimes cuja sentença depende do tribunal do júri, estudos apontam que a mídia pode induzir a um julgamento anterior, o qual, uma vez fincado no imaginário popular, é assimilado como a verdade absoluta, dando ao réu um direito ao contraditório mitigado, falseado, pois a sentença precede até mesmo a apresentação das provas. Enquanto para a vítima e para o réu o julgamento implica uma consequência real em suas vidas, para quem assiste através das telas, o tribunal é sinônimo de espetáculo – e a sede pela justiça, ou pelo menos o que se entende por esta em cada caso, revela uma inclinação sádica do público.

Entre o cômico e o trágico, “Coringa: Delírio a Dois” apresenta um espetáculo falso, onde nós, enquanto público, não temos o que queremos, nem da forma como desejamos. O que ganhamos dessa experiência, pelo contrário, é um estudo de personagem complexo, mais aprofundado ainda que o primeiro, cujo tempo psicológico nos revela um pessimismo intransponível. É uma experiência que é tudo menos prazerosa. Somos confrontados com a constante e real espetacularização da violência e dos violentados, através de uma crítica formal e estética ao sensacionalismo, transparente na maneira como lidamos com o Coringa de 2019, com nossas políticas penais e até com as enxurradas de produções de true crime que invadem o top 10 da Netflix semanalmente.


Em Gotham ou em qualquer lugar do mundo “real”, Arthur Fleck poderia até tentar amar, fugir ou sonhar, mas os sentimentos bons de clássicos musicais hollywoodianos jamais se aplicariam a uma pessoa como ele. A negligência estatal, fatal para a sua infância, e o sistema capitalista, exploratório, de um mundo ruim em seu cerne, roubaram de Fleck o direito de sonhar. E ele, como resposta no primeiro filme, roubou de muitas pessoas o direito de viver. Agora, ele volta, roubando do público a chance de gostar.

A percepção de uma câmera que dimensiona o espetáculo do julgamento ao nível televisivo é uma forma de desprezar ainda mais o espectador do filme anterior. Não é entretenimento, de forma alguma. Se fosse, não teria sentido, não teria por quê. Esta continuação é o mesmo que dizer que temos uma obra que materializa a essência do “Coringa”, contraditória, a qual encontra graça nas suas deturpações, e por vezes errática, mas nunca menos interessante, em que a punchline final é (spoiler alert!) o fim trágico do próprio personagem.

O fim definitivo das coisas é a morte. Não há romance, não há absolvição, não há redenção (e, por isso também, não há um Coringa 3). Por que teria de haver prazer ou diversão alguma ao assistir a última chama de esperança em direção ao fim? É torturante como deve ser, errático como somente um filme com tal propósito poderia ser. Mesmo com suas falhas, “Delírio a Dois” comete o incrível feito de usá-las a seu favor na coesão final. Não acho que seja intencional, claro, as falhas estão ali muito claras para todo mundo ver, mas de alguma forma perceber o filme por essa ótica ameniza tudo isso e contribui para que ele possivelmente cresça bastante nas próximas revisões.

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