Guerra Ao Terror: O Inimigo Imaginário e Desumanização
Artigo

Analisando Kathryn Bigelow: Guerra Ao Terror (2009): O Inimigo Imaginário e Desumanização Premiada

Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa série de cinco textos serão analisados os filmes: Estranhos Prazeres (1995), Guerra ao Terror (2009), A Hora Mais Escura (2012) e Detroit em Rebelião (2017). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Kathryn Bigelow.

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A máquina de guerra estadunidense é poderosa e não há nenhuma outra nação com a força militar dos norte-americanos. Evidentemente isso não vem de graça, já que os custos para manter essa máquina funcionando é a vida de milhares de soldados, ou vidas humanas, como queira chamar. Apesar do governo americano tratar seus soldados como deuses da proteção soberana, eles são peões de uma máquina que verdadeiramente não importa com os seus humanos. Soldados do front de batalha, no fim do dia, são números contabilizados no prejuízo ou lucro orçamentário de fazer uma guerra, uma lápide num vasto cemitério com outras lápides tão indiferentes ou sujeitos repletos de traumas psíquicos pós estresse. Apesar da tentativa de humanizar os soldados para cumprirem a tarefa, eles precisam ser desumanizados para a tarefa ser cumprida. Para além disso, é preciso desumanizar também o inimigo, pois só assim sujeitos se matariam com a força que se matam.

A GUERRA É UMA DROGA

“A pressa da batalha costuma ser um vício potente e letal, pois a guerra é uma droga” – Chris Hedges

Guerra ao Terror, sexto filme da diretora Kathryn Bigelow, escolhe fazer seu recorte temporal em missões do esquadrão antibombas de um destacamento que está a pouco mais de 30 dias para voltar para casa. A abertura é uma cena de desarmamento de bomba numa rua qualquer de Bagdá, capital do Iraque. Numa missão aparentemente como qualquer outra, em que desarmar bombas era tão normal como o nascer do dia e que os soldados estavam relaxados tendo conversas triviais, num momento de extrema tensão e confusão, o responsável por desarmar a bomba é morto por uma explosão milimetricamente bem filmada em slow motion, que se destaca pelo apreço técnico do horror que virá a seguir. Esses minutos iniciais determinam o tom visceral das próximas duas horas de filme. Não haverá descanso aos personagens nem ao espectador. A diretora reserva o máximo de tensão e proposital confusão com sua câmera, para descrever com detalhes a ambiguidade vida/morte na rotina de soldados no campo de batalha.

É interessante o quanto Bigelow já nos coloca de frente com um grande ator de Hollywood, Guy Pearce, no papel do Soldado Matt Thompson, para minutos depois matá-lo sem qualquer cerimônia. Sobram dois atores até então desconhecidos do grande público que seguirão no destacamento: Anthony Mackie como o Sargento Sanborn e Brian Geraghty como o Especialista Eldridge. Com a morte de Thompson, o Sargento William James, papel afiado de Jeremy Renner, é incorporado ao destacamento de Sanborn e Eldridge. James tem comportamento imprudente, mas é extremamente obcecado com sua função em desarmar artefatos bélicos. Isso, de saída, causa enorme tensão com Sanborn que não vê os dias acabarem para voltar para casa, já que qualquer passo em falso pode acabar com a vida de todos eles.

Escrito pelo jornalista e roteirista Mark Boal – parceria que Bigelow vai repetir nos próximos dois filmes – Guerra ao Terror é a reunião de investigações de centenas de fatos sobre a rotina insalubre, estressante e desumanizadora dos soldados durante a invasão dos Estados Unidos ao Iraque. Consta que Boal, durante seu período como correspondente de guerra, passou algumas semanas na divisão de explosivos do exército durante as operações no ano de 2004. O filme, também ambientado nessa época, parece retratar, ou pelo menos tenta dar a dimensão, da angústia e do alto nível de tensão dos militares que operavam nessa área. Junto a isso, uma enorme massificação dos iraquianos e a desumanização generalizada, pois todos, em alguma medida, parecem ser potencialmente terroristas. Apesar desses artifícios de roteiro para dinamizar o filme, é impossível passar por isso sem sentir algum incômodo.

Existe uma insistência em humanizar os soldados, especialmente James, o mais traumático e adicto de todos, já que carrega consigo alguns dispositivos de bomba que desarmou. O personagem diz que carrega esses artefatos para guardar coisas que “quase o mataram”, que curiosamente, na mesma caixa dos artefatos, também há a aliança de casamento e a foto do filho. É uma tentativa interessante e eficiente de dar personalidade ao personagem, mas esse mesmo personagem, também pelo roteiro, rejeita a humanidade a ele atribuída, especialmente por suas ações imprudentes e por seu vício na adrenalina da guerra. James assume o protagonismo da história, embora fique em suas costas a representação do trauma cristalizado que a guerra provoca.

Sanborn é o único focado em simplesmente cumprir a tarefa para se ver livre daquele ambiente o mais breve possível. Não toma grandes riscos além do risco da função e acaba sendo mais estressado por James, porém não é apenas de estresse que Sanborn sofre, a manifestação somática do personagem é a constante paranoia. Eldridge é o traumatizado que paralisa, não consegue executar bem a função e precisa de apoio psicológico. Parece ser ele o mais afetado diretamente pelo sintoma imediato do horror da guerra, a incrível e destrutiva sensação de poder morrer a qualquer momento e por isso não conseguir fazer nada. São esses os arquétipos bem narrados por Boal e filmados com precisão por Bigelow que adicionam verdade cênica ao projeto.

A frequente câmera na mão e o olhar quase documental dos eventos, dão credibilidade e imprimem confiança a quem assiste, é fácil acreditar naquelas situações. A certeza de sempre saber onde posicionar a câmera ou onde buscar o foco é graças a contribuição excepcional com o diretor de fotografia Barry Ackroyd, algo que só funcionaria em parceria com uma direção precisa e afiada, que fica visível na dramatização dos atores em tela. Inclusive, em um dos momentos de maior tensão do filme, durante uma tarde no deserto que ficam presos em uma emboscada com um grupo de milícia contratada pelos próprios Estados Unidos, Ralph Fiennes faz uma breve aparição para ser eliminado sem qualquer aviso.

Kathryn Bigelow é uma diretora corajosa: elimina grandes atores sem qualquer cerimônia; constrói um drama de guerra com apenas três atores desconhecidos e confia neles o máximo de entrega e domínio da ação; escolhe o mais próximo do realismo tentando fugir do excesso de dramatização – que não consegue muito bem. Apesar da dramatização, em momento algum a espetacularização dos eventos se sobrepõe ao horror anticlimático da guerra, ainda que tenha sido gasto mais tempo que o necessário com o drama envolvendo o garotinho Beckham (Christopher Sayegh) que vende DVD’s na porta do quartel. E mesmo com esse excesso, Bigelow filma as cenas que envolvem ele de forma extremamente protocolar, e quando acompanha James até a suposta casa do garoto, também é honesta em filmar os iraquianos que forçosamente o recebem.

O Sargento James, quando termina seu período em campo da pior forma possível, tendo que deixar morrer um homem-bomba numa cena violentamente angustiante, não consegue sustentar uma vida cotidiana junto a família. Sua vida é preenchida pelo tédio, pela rememoração constante de cenas traumáticas e a vontade instintiva de voltar ao cenário de guerra para enfim dar cabo a sua pulsão de morte. É um trauma tão cristalizado que não parece haver conforto numa vida cotidiana. Isso ajuda Bigelow a criar uma das sequências finais mais estranhamente fúnebres do cinema, em que o recomeço de um ciclo mortífero é a possibilidade de vida para um sujeito despedaçado. James é a amalgama de soldados que lutaram, morreram e foram traumatizados por uma guerra em que o grande inimigo era imaginário.

Graças as escolhas estéticas de Bigelow, Guerra ao Terror é um filme que desenvolve de maneira segura e meticulosa, a deterioração ética e moral que a incrustação da ideologia militar causa nos soldados em batalha. Talvez quem tenha conseguido chegar também nessa ambiguidade ideológica tenha sido Francis Ford Coppola com seu épico Apocalypse Now (1979), que além de toda a ação perfeitamente orquestrada e ensaiada, a linha narrativa do domínio ideológico nos soldados é bem trabalhada. Nessa mesma linha, o famoso Nascido para Matar (1987) de Stanley Kubrick faz sua contribuição, porém, o que desabona na minha avaliação, é sua literalidade quase infantil ao tratar a narrativa. Michael Cimino no seu notável e na minha opinião, pouco inspirado Franco Atirador (1978), aprofunda os efeitos do trauma ideológico numa masculinidade extremamente frágil.

Apesar de tratarem de guerras diferentes e escolherem estéticas completamente distintas, os quatro filmes apresentam complementariedade ao universo militar estadunidense. No filme de Bigelow só há tristeza, tensão e terror; Coppola registra o espetáculo pirotécnico como anti-espetáculo e a alienação figurativa como desumanização de um sujeito; Kubrick não se furta em ser direto e objetivo sobre a máquina de suicídio que é o exército norte-americano; Cimino desenvolve o horror do trauma e da desumanização quando não sobra mais nada. Além de registrarem e dramatizarem a implementação ideológica na formação hierárquica, disciplinar, paranoide e desumanizadora dos soldados – criando alienação da verdade – tanto no Iraque quanto no Vietnã não havia nada do que alegavam estar procurando, era tudo uma grande mentira que rendeu boas histórias e muita morte, inclusive dos que sobreviveram.

FILMES ACONTECEM EM UM CONTEXTO

Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, George W. Bush, então presidente dos Estados Unidos, proclamou a “Guerra ao Terror”, uma campanha militar que visava combater o terrorismo no mundo. Um mês após os ataques, o Afeganistão foi invadido com a recusa do Talibã em entregar Osama Bin-Laden, o responsável pelos atentados de 11/09. Passados 20 anos de dominação estadunidense do território afegão, a saída em 2021 foi um completo desastre e a democracia prometida não floresceu. Em março de 2003, mentindo de que o Iraque teria armas químicas e nucleares – que nunca tiveram pois nada foi encontrado – os estadunidenses invadiram o país e derrubaram o regime de Saddam Hussein que foi julgado e executado anos depois. A invasão jogou o país numa guerra sem precedentes e a democracia prometida não floresceu. O que floresceu nesses anos de invasão foi o bolso das petroleiras norte-americanas, a indústria armamentista e as forças militares paralelas.

Em artigo de setembro de 2021, o jornalista do The Guardian, Steve Rosa publicou: “em novembro de 2001, a Casa Branca de George W. Bush se encontrou com chefes de estúdio para discutir como a indústria do entretenimento poderia ajudar na “guerra contra o terror”. Imagino que não seja muita novidade o quanto o cinema pode ser uma arma poderosa na criação de imaginário de um povo e como ferramenta de poder de influência entre países – popularmente conhecido como soft power. Assim como Guerra ao Terror fez parte dessa imensa ideia de construção de soberania através da cultura de massas, várias outras obras, inclusive o próximo filme que vamos analisar, são participantes do plano norte-americano de construção de imaginário de vilões e mocinhos do mundo pós Guerra Fria.

Quem mais sofreu com essa estigmatização foram as populações do Oriente Médio, especialmente os muçulmanos. A massificação e generalização de que todos os muçulmanos são potencialmente terroristas, violentos e atrasados, fez parte da construção geopolítica estadunidense com total apoio dos grandes estúdios de Hollywood. No artigo “Tropos reciclados e a persistência da islamofobia em filmes americanos”, publicado em 2020 na revista Inquiries Journal por Meagen Tajalle, ela argumenta que com a impopularidade da guerra no Iraque, novas estratégias precisaram ser formatadas para continuar com as invasões: “Ao situar o islamismo na raiz da ameaça do terrorismo, os muçulmanos, não os terroristas, tornam-se o inimigo (…) A problematização do islamismo como religião, em vez do terrorismo como ato, alimenta a narrativa do “choque de civilizações”, que se baseia em visões fechadas do islamismo como monolítico, estático e, portanto, antimoderno, e inerentemente em desacordo com os ideais ocidentais, incluindo a democracia.”

Tajalle também elabora sobre o quanto o garotinho Beckham é o “bom mulçumano”, sendo o contraponto ao “mau mulçumano”, um tropo narrativo que praticamente sustenta Guerra ao Terror, porém na base do estereótipo: “A “bondade” dos personagens muçulmanos muitas vezes depende de sinais de assimilação ocidental, enquanto traços e atos “maus” são frequentemente ligados à religião”. Isso não acontece apenas em Guerra ao Terror. Filmes como o insosso Argo (2012), o frígido Sniper Americano (2014) e o verborrágico Vice (2018), são exemplos muito interessantes de como os estadunidenses representam os muçulmanos e de como a islamofobia está presente nessas representações. O fato é que após os ataques de 11/09, o cinema norte-americano mudou muito. Os comunistas foram substituídos pelos muçulmanos como os grandes vilões do século XXI, e como todo império para se manter de pé precisa de um inimigo, foi preciso reeditar o terror.

KATHRYN BIGELOW, UMA CIDADÃ ESTADUNIDENSE

Acima de qualquer coisa, Kathryn Bigelow é uma cidadã norte-americana e isso faz com que todas as suas análises sobre o próprio país sejam completamente apaixonadas. Não há como ter um olhar puro, imparcial sobre os fatos, especialmente quando seu país é atacado de maneira tão atroz e violenta como foram os atentados as torres gêmeas. É claro que mesmo com os investimentos implacáveis do governo estadunidense na indústria cinematográfica para contar histórias de guerras atuais, dificilmente um olhar mais crítico seria possível. Primeiro que a guerra, durante a realização do filme, ainda acontecia; segundo que dificilmente se teria uma posição menos patriótica vindo de um país que incentiva fortemente seus símbolos nacionais.

Me parece ser uma crítica preguiçosa dizer que Guerra ao Terror é muito estadunidense. Sim, ele é, e mesmo com isso, é um excelente filme. Na minha opinião, Kathryn Bigelow conseguiu, com muito mais acertos do que deslizes, construir um filme que é um dos melhores do século XXI. Sabemos que prêmios nem sempre são a prova de que o filme é um bom filme, mas nesse caso a Academia acertou. Ganhador do Oscar de Melhor Filme, Melhor Direção – a primeira mulher na história da Academia a receber o prêmio – Melhor Montagem, Melhor Roteiro Original, Melhor Som e Melhor Edição de Som. Guerra ao Terror, apesar do enorme sucesso na temporada de premiações não fez grandes bilheterias. No Brasil, o filme foi lançado em 2009 primeiramente em DVD e após a repercussão das indicações, fez sua breve passagem nos cinemas em 2010.

Talvez a estética menos espetaculosa da ação tenha contribuído para o baixo faturamento do filme. Há várias entrevistas disponíveis que a diretora comenta da sua preocupação em contar as histórias de milhares de soldados mortos numa guerra sem sentido e que seu objetivo era focar nos personagens humanos naquele ambiente de destruição, independente do gênero ação/guerra. Guerra ao Terror funciona perfeitamente bem como um drama de guerra visceral, violento e traumático, ao mesmo tempo que é um grande filme de ação em que a tensão é elevada ao máximo, além de ser permeado por um belo estudo da masculinidade entre os personagens.

É fato, porém, que há um ufanismo latente nos filmes da diretora, esse em especial, quando quase glorifica os soldados estadunidenses como se estivessem numa guerra santa em favor da liberdade e pelo fim do terrorismo – claramente não era bem assim. Basta ver quando a diretora tentou retratar uma outra “nação”, os soviéticos, no inexpressivo K-19: The Widowmaker (2002). É muito caricato e pouco crível, ainda que os soviéticos já tenham provado ao mundo a incapacidade de lidar seguramente com energia nuclear. Apesar das contradições e patriotismo muito presentes nesse filme gravado em 2007, ou seja, no andar fervilhante da carruagem, Kathryn Bigelow talvez seja uma das poucas diretoras de Hollywood que conseguiu retratar tão bem o estrago da ideia de dever patriótico em um personagem. É tudo tão intrínseco que o personagem James passa a ter medo dele mesmo – do estrangeiro que é para si mesmo – e não do estrangeiro externo que ele combatia.

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