Crítica: Caminhos Cruzados
Ficha técnica – Caminhos Cruzados
Direção: Levan Akin
Roteiro: Levan Akin
Nacionalidade e Lançamento: Geórgia, Turquia, França, Dinamarca, Suécia, 2024
Elenco: Mzia Arabuli, Lucas Kankava, Deniz Dumanli, Nino Karchava, Levan Bochorishvili.
Sinopse: Lia, professora aposentada, prometeu encontrar sua sobrinha Tekla, há muito perdida. Sua busca a leva a Istambul, onde ela conhece Evrim, advogada que luta pelos direitos das pessoas trans.
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Em “Caminhos Cruzados”, que chegou recentemente para streaming na Mubi, temos a história de uma professora aposentada que foi incumbida por sua irmã que acabara de falecer, e de quem cuidou, a encontrar a sobrinha que foi expulsa de casa por ser uma mulher trans. Na rota de busca, acompanhamos a professora Lia, papel de Mzia Arabuli, junto ao garoto Achi, interpretado por Lucas Kankava. O título não é à toa, a maneira como estradas pessoais completamente distantes se intercala, é mérito do roteirista Levan Akin, que também dirige o longa, e seu maior trunfo é a organicidade das ações com toques de sensibilidade notáveis.
Procurar uma pessoa de quem não sabemos o paradeiro e com poucas pistas parece uma atividade quase impossível, mesmo que as tecnologias ajudem na empreitada. Saindo da Geórgia para Turquia, acompanhamos a travessia de Lia e Achi, dois sujeitos completamente diferentes em personalidade, que vão se afinando depois de alguns desencontros, mas ao longo da rodagem, a criação de afeto entre os dois toma proporções profundamente íntimas. É uma jornada de descoberta ao longo de um roadmovie. Esse desabrochar é tom certo no roteiro, pois a todo momento somos apresentados a novos fatos à medida que as personagens também vão se descobrindo. É uma sensação de ir tateando no escuro até chegar em algum lugar aparentemente previsível.
Fazendo essa mesma travessia fronteiriça, temos Evrim, papel de Deniz Dumanli, que apresenta força e coração impressionantes. Evrim é uma mulher trans que trabalha em uma ONG que acolhe pessoas trans em Istambul, e que cruza os caminhos de Lia e Achi numa das quase improváveis ruas de um bairro majoritariamente queer da cidade. A questão trans é tratada com naturalidade por Akin, que sabe dosar as experiências e sensações, sem ser professoral e não cair na narrativa da miséria de afeto. Quem precisa mudar e se redescobrir está do outro lado. É Lia que precisa passar por cima de seus preconceitos, enfrentar o que as coisas são e buscar reparação.
Esse amadurecimento que vem acompanhado de um ar doce em Lia, mas sem perder o peso do arrependimento, é mérito da atuação fenomenal de Mzia Arabuli. As linhas de expressão em seu rosto, que começa amargurado e reativo, vão se amenizando à medida que reconhece os equívocos de sua postura, que do amor que sentia pela garota se transformou em exclusão pelo preconceito social e cultural do país. Esse ponto é sensível e Levan Akin quase pisa na bola. É comum em narrativas que contam histórias de grupos marginalizados, como é o caso de mulheres trans e travestis, que elas acabam sendo usadas como totens de transformação de um sujeito e ficam terceirizados na narrativa. Felizmente, e é por pouco, isso não acontece.
Ele não cai na armadilha pois escolhe uma estrutura muito clássica de roteiro para contar sua história, então, apesar do potencial em fazer algo diferente, estradas narrativas seguras são escolhidas para errar menos, e é uma escolha legítima. “Caminhos Cruzados” não arrisca muito e é corajoso ao colocar um arcabouço na personagem Evrim como uma mulher fora dos clichês sociais; em apresentar Achi como um garoto que tinha tudo para ser um personagem chato e quase reacionário, em um sujeito relativamente progressista e resiliente. Todas essas dinâmicas fluem bem ao longo da história. Há um tempo de contemplação quase improvável, já que o diretor escolhe filmar uma Istambul que não é a dos cartões postais e sim aquela quase inacessível, e é feito de maneira acolhedora.
O jeito de filmar também aparece nas cenas de afeto, que são poucas e sempre filmadas à distância, dando a impressão de respeito para evitar a intrusão da intimidade daquelas personagens. Os planos são bem estruturados e com o corte preciso, porém, isso nem sempre acontece, especialmente ao compor planos contemplativos que romantizam a situação de pobreza, especificamente nas cenas com as duas crianças. Existe um olhar propositalmente inocente que é difícil superar, criando a sensação de falta de destino para essa linha narrativa, e beirando certa equiparação do sofrimento, como se todos os marginalizados sofressem igual, e talvez não seja bem assim, especialmente por não haver nada que indique um não-realismo na narrativa.
“Caminhos Cruzados” é um filme consciente de suas limitações e opta por fazer escolhas menos arriscadas ao tratar de seus temas principais. Escorrega em alguns momentos, mas é salvo nos minutos finais, quando subverte um clichê anunciado do reencontro casual. Seu roteiro bem tradicional evita desgastes maiores em momentos problemáticos garantindo uma resolução honesta e emocionante. Acerta quando coloca seus personagens principais em lugares mais interessantes e esperançosos do que quando começou, mas sem perder a dureza da sobrevivência e da perseverança em sustentar a angústia dos atravessamentos vividos por eles. E embora pareça um mito a ideia de se colocar no lugar do outro – o que em partes é verdade – as experiências existenciais de cada sujeito são diferentes, inclusive por dependerem do momento histórico-cultural, mas isso não cria a impossibilidade de serem compreendidas.