A melancolia incurável no centro de La Chimera
“La Chimera”, da cineasta italiana Alice Rohrwacher, preenche um campo simbólico interessante de memórias e luto, e representa com qualidade a atmosfera bucólica do interior das ruinas italianas. Em discussão, o dom de encontrar algo abandonado, fazer alguma coisa e dar vazão ao sentimento, ou deixar-se enterrar na própria melancolia e ver último fio de vida ser despedaçado. Arthur, personagem de Josh O’Connor, é o nosso protagonista-guia dentro de sua própria dinâmica existencial repleta de vazios, incertezas e destruição, que nos leva a frase professoral de que algumas coisas, mas uma em específico, “não foi feita para os olhos humanos”.
É das ruinas que podem sair a vida e o restante de destruição. Somos constantes ruinas em vida. A todo momento despedaçados, seja pelo terror de sobreviver, pela morte de algum amor, pela separação. Viver, a depender do vínculo com a própria vida, é uma eterna reconstrução. O melancólico, em linhas gerais, é aquele que não faz a segunda volta, não sustenta a reconstrução, declina da própria ideia de si fora da dinâmica existente, pois se vê preso ao Outro que o invade. Arthur, que perdeu seu grande amor, passa a fazer do ofício, escavar túmulos, uma busca constante do reencontro impossível de ser feito em vida. Parece buscar nas ruinas o que sobrou e mesmo assim não encontrar, e quando acha, são fragmentos sempre insuficientes ao desejo.
O que chama a atenção em “La Chimera” é que todos estão centralizados na tela, e quando não estão, buscam a centralidade ou são arrastados a ela. Tudo que precisamos saber, ou o que quer ser mostrado, acontece no centro, sem grandes desfoques, e talvez isso ilustre a dureza do ser-existir sem a perspectiva de sair da posição melancólica. Essa capacidade de Rohrwacher pode parecer um tanto pobre do ponto de vista gramático, mas encontra sua beleza na dramaticidade que sustenta sua história. Arthur, é um jovem arqueólogo que se junta a outros ladrões de túmulos na contemporânea Toscana, em busca de artefatos para serem vendidos no mercado de arte. A tal da Chimera, não é necessariamente sobre o mito, mas sobre o encontro de um objeto abstrato ou concreto que represente a passagem para algo melhor. Para a trupe de ladrões, é o dinheiro e uma vida mais próspera, para Arthur, parece ser a passagem para o reencontro com sua amada perdida Beniamina.
De certa forma, todos temos nossas próprias quimeras, o desejo utópico e por vezes, na maioria, muito fantasioso que tanto buscamos. Direcionar o desejo total em torno de uma pessoa, que é o caso de Arthur, pode parecer a salvação, mas com a inexistência desse outro, o que sobra é o próprio sujeito e a infeliz tarefa de se sustentar para seguir. Arthur, ainda tenta, ao encontrar Itália, papel brilhante da brasileira Carol Duarte, redirecionar seu afeto para seguir a vida, mas o encontro parece ter sido tarde demais. A melancolia, esse estado psíquico “nem lá nem cá” tem seus cheiros, percebidos por aqueles que vivem suas misérias, mas despercebidos por aqueles que não compartilham desse amor pelo intangível ou pelo amor que falsamente completa.
Existem aspectos interessantes que a diretora e roteirista Alice Rohrwacher explora para nos mostrar o contato com o mundo onírico que Arthur parece conseguir. Ele, aparentemente, tem um dom de saber o que está escondido e encontrar. É dom e maldição, pois tem coisas escondidas que não podem ser descobertas, a não ser se escondendo –- é o dilema da morte que voltaremos mais a frente nesse texto. É assim que Arthur descobre, antes de todo mundo, que os filhos de Itália estavam escondidos na casa de dona Flora, vivido pela gigante Isabella Rossellini.
O melancólico, em tese, vê aquilo que ninguém vê, já que funciona em um tempo diferente, muito fixado no que é, no que se apresenta na carne crua. Ele sabe mais do inconsciente, que não tem um tempo definido, do que os neuróticos, e por isso sofre, além de ocupar uma posição paradoxal: querer sair e não conseguir e por isso retornar. No livro “O tempo e o cão” da psicanalista Maria Rita Kehl, ela diz que “é preciso o convidar o depressivo a ter coragem de apostar em alguma construção de sentido para contrapor o vazio de sentido que o abate”. Itália faz esse convite a Arthur, porém, parece faltar a ele a coragem para construir algum sentido após a perda de Beniamina. Arthur fica preso num tempo outro, que parece ser impossível criar simbolizações para livrá-lo do estado que se encontrava.
É difícil aprofundar, já que não sabemos mais nada do passado de Arthur. O que é possível afirmar, é que após a perda do seu grande amor, ele parece ter regredido para além do estado depressivo, muito comum no luto, e recuado ainda mais para a melancolia. Nesse processo, o fator temporal faz toda a diferença na crônica de Rohrwacher, pois é com ele que de saída nos deparamos. A primeira cena é um sonho ou uma memória? Os passageiros do trem, estavam vivos ou não? Isso não importa necessariamente. Mas é belo, ao mesmo tempo que é extremamente angustiante, acompanhar um personagem como Arthur. Ele parece parado, seja pelas roupas que usa, uma eterna repetição de um estado que não tem fim, e se nega, por forças inconscientes a seguir. Quem canta o desenvolvimento da história são os cancioneiros, não Arthur. Se o tempo passa não é por ele, e sim pelo outro.
“La Chimera” aponta para o fim, o tempo todo. Aponta as ruinas italianas como fonte de desejos e maldições. Itália, o país, tem ruinas que continuam a ser reviradas, na política especialmente. O país de Mussolini é o mesmo de Giorgia Meloni (primeira-ministra italiana filiada ao partido de extrema-direita Irmãos da Itália) com as suas macabras semelhanças. Há quem encontre sentido e reconstrução nas ruínas, o caso da personagem Itália. Fazer da coletividade o sentido, fazer da feminilidade o novo e o reencontro, fazer das ruinas a construção e não mais destruição. É o tempo que diz, mas ao mando do desejo. O desejo de recomeçar ou reconstruir invade, e mesmo que esse desejo parta da repetição, se houver um elemento inédito nessa lógica, encontra-se a saída. Arthur fica parado no tempo, um tempo que não passa pois não reencontra o objeto perdido, é “um tempo que não produz diferença, que não promete nada a não ser a perpetuação de um presente estagnado, vazio”, elabora Rita Kehl.
Me senti tragado a assistir “La Chimera” duas vezes, pois alguma coisa naqueles personagens, muito mais do que a direção extremamente competente de Alice Rohrwacher, chamava a atenção. O roteiro, que também é dela, explora sensações e emoções com esperteza e sensibilidade típicas de uma crônica do Veríssimo, e pelo menos aqui, sua caneta é mais afiada que o olhar que captura. Mesmo sendo um recorte temporal curto e um espaço geográfico delimitado, não falta nada ao filme de Rohrwacher, já que a intensidade com que as ações acontecem dizem tudo o que precisa ser colocado. O fim antecipado por Arthur parecia ser a única saída, já que o tempo perdido estava instalado, e uma “passagem do tempo perdido para o tempo encontrado” só seria possível caso ele sustentasse a angústia de inventar alguma coisa em que confiasse seu desejo. Como isso não foi possível, pois há coisas que não podemos ver, Arthur só conseguiu puxar o fio que o ligava ao seu amor, quando também se transformou na relíquia que tanto procurava.