Jogo de Cena (2007) é a testemunha do trauma e do (extra)ordinário na vida cotidiana
Na época que gravamos o podcast sobre a vida e obra de Eduardo Coutinho aqui para o Cinem(ação), lembro de dizer que “Jogo de Cena” era um dos poucos filmes que me colocava numa posição de impotência frente a ele. Me sentia incapaz de escrever ou fazer uma elaboração minimamente decente sobre, mas revendo nesse final de semana, numa dobradinha um tanto inusitada com Fleabag e Lady Bird, parece que consegui chegar a alguma elaboração possível. Recentemente, essa obra prima do Coutinho entrou na lista de Melhores Filmes dos Anos 2000 da IndieWire, e isso também pode ter contribuído para minha associação, mas ainda suspeito que os temas abordados, como a maternidade, os traumas e os desencontros do amor, sejam os grandes responsáveis pela minha fixação em tentar escrever sobre esse filme.
Sempre achei desafiante escrever sobre “Jogo de Cena”. Só nesse ano, revisitei esse filme por 4 vezes, e em cada revisita, algo de novo aparecia de maneira quase súbita em mim. Uma palavra não captada; um gesto que muda o sentido; o desencontro desapercebido; a linha temporal dramática do cineasta e da brilhante montadora Jordana Berg que aparentemente pareciam não estar lá. É obvio que o filme continua o mesmo, quem mudou ao longo do tempo foi eu, que talvez já não seja mais o mesmo (ainda bem pois tenho pavor de ser o mesmo de semana passada, quem dirá o mesmo de fevereiro).
Lembro de ter visto a primeira vez na época da faculdade, muitos anos atrás, em função de um trabalho de alguma disciplina que não me lembro qual. Depois de anos revi para o clube, depois para a gravação do Podcast, e outras duas vezes por vontade própria –vontade própria eu não sei, mas suspeito que tenha sido uma das várias pegadinhas do meu inconsciente. Talvez agora, eu consiga chegar a algum lugar com isso. Esse texto é uma tentativa, que eu suspeito ter falhado, de escrever, ou contar, ou narrar sobre essa peça cinematográfica. O Rafael, um dos editores aqui do Cinem(ação), disse à época da gravação, que assim que eu conseguisse escrever sobre “Jogo de Cena”, era minha obrigação enviar para a publicação. Então, aqui está.
Existe algo na carreira do Coutinho que parece uma análise psicanalítica de eventos reais, que se misturam com a ficcionalidade ao ligar a câmera. Mesmo que a história seja real, na frente da câmera ela ganha contornos de ficção. E com “Jogo de Cena” isso é levado ao extremo, sendo quase impossível não se misturar com aquelas histórias. Um filme que fica na borda, na beirada da ficção e do real. As vezes parece um evento psicótico, em que a tela que grava aqueles depoimentos é a mesma que transmite na TV da minha casa. Com “Jogo de Cena”, misturo minha realidade com a ficção. Raros filmes me fazem sentir assim. Entro num transe, com características leves de “psicose”, que até então me impediam de tentar fazer uma elaboração fora dessa mistura.
O amor, a separação, a morte e a destruição (ou não) de vínculos, são temas que eu carrego comigo por motivos de paixão, sou fascinado por histórias que contam dessas dilemas. Nessa obra do Coutinho, essas questões são a linha narrativa. Da abertura com uma ingressante no teatro e sua história de encenação com um fim avassalador, ao último depoimento com uma música que é de partir o coração, sendo que a promessa da entrevistada era terminar “mais pra cima”. Tudo isso, do início ao fim, com uma confusão e ordenação tão magnífica, que nos retira da realidade por ligeiros 105 minutos. Toda vez que assisto ou penso em “Jogo de Cena” me sinto hipnotizado.
E essa avalanche de drama e histórias únicas, começa com a seguinte chamada: “Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos”. Assim surgiu um dos melhores filmes da história do cinema, na minha humilde opinião. A mistura de pessoas comuns, atrizes reconhecidas e não reconhecidas do grande público, evidencia a incapacidade de representar, encenar, ficcionar histórias tão reais. São histórias tão humanas que não tem ficção que dê conta. A graça e a tragédia está em sustentar as contradições do viver ou do sobreviver, e talvez Coutinho soubesse disso ao escolher apenas mulheres para contar suas histórias.
É impossível falar de “Jogo de Cena” sem falar do lugar do feminino na sociedade. Ser mulher é muito mais difícil do que ser homem. Existem sofrimentos e atravessamentos muito característicos que marcam profundamente a existência do se tornar mulher. Uma personagem da segunda temporada de Fleabag, diz que ser mulher é viver com a dor dentro de si constantemente, até que tudo se acalma depois da menopausa. E tem dores, como as retratadas por Coutinho, que transcendem a menopausa. Perder um filho após o nascimento; ter o filho morto por um assaltante; não ter uma relação decente com a filha; viver separada da filha, etc. Dores de um casamente falido, da separação, do abandono, do desconhecido, etc. Homens também passam por isso, mas são a minoria da minoria. Homens abandonam, fogem e em sua maioria são covardes, pois não sustentam a dor junto com suas companheiras. A mulher não tem para onde fugir, ela é historicamente obrigada a sustentar a dor, independente de onde e como ela venha, e de forma solitária. Isso é a tragédia.
E são dores tão particulares, que mesmo que com histórias semelhantes, a representação delas se torna impossível. Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marilia Pêra, atrizes renomadas e de talento indiscutível, falham vertiginosamente nas suas representações, pois se veem misturadas demais com as histórias reais que pretendiam encenar. Não há possibilidade de ser próximo do real, se não for mecanizado, ensaiado demais. Representar alguém que existe de verdade e não um personagem ficcional, talvez seja uma das coisas mais difíceis de fazer. Inconscientemente, o Eu e Outro tentam se colar, mas fracassarão para manter se grudados, logo, se torna impossível saber, sentir e perceber o que o outro está verdadeiramente sentindo. Seja ficcionalizado pela câmera ou não, cada um tem direito a própria história e ao próprio sentido.
“Jogo de Cena” se destaca por ser um registro trágico e (extra)ordinário da vida cotidiana da mulher brasileira. E talvez esse seja o motivo dele ser tão misterioso para mim. “Jogo de Cena” carrega uma incompletude que sou incapaz de acessar, nem como crítico e colunista de cinema, nem como psicanalista, minha profissão na vida real. No fundo eu sei, e talvez o Coutinho também soubesse, que ao nos disponibilizarmos para escutar a história de alguém, seja da dimensão que for, será um registro único, incompleto, faltante, impossível de ser sentido e vivido na mesma intensidade do contante. Só nos resta, o que é um tanto trabalhoso, ser testemunha dos traumas do cotidiano. Coutinho foi, e continuará sendo, o maior ouvinte dos traumas da história brasileira.
E refletindo enquanto escrevo, talvez tenha chegado a algo que não tinha notado. Conseguir escrever sobre meu sintoma psíquico – que “Jogo de Cena” revela – é perceber minha incapacidade de não conseguir capturar tudo que poderia ser capturado, viver faltante e mesmo assim continuar, ou pelo menos tentar. Escrever continua sendo a tentativa de exorcizar minhas incompletudes, na esperança de que um outro seja a testemunha que não consigo ser para mim mesmo.