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Cinema Mundial

Crítica: Armadilha (2024)

Ficha técnica – Armadilha
Direção:
M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2024
Elenco: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan, Alison Pill, Hayley Mills, Jonathan Langdon, Mark Bacolcol.
Sinopse: Cooper (Josh Hartnett) e sua filha adolescente estão em um show de música pop quando Cooper percebe a presença excessiva de policiais ao redor e isso o deixa inquieto. Rapidamente, ele consegue descobrir com a equipe que trabalha no local que ambos estão no epicentro de uma armadilha montada para capturar um serial killer. O que deveria ser uma noite de diversão entre pai e filha se transforma em uma luta desesperada pela sobrevivência.

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Em sua filmografia, Shyamalan possui o mérito inquestionável de deter o absoluto controle dos seus espaços. Seja no pequeno motel de A Dama na Água (2006), na vila de A Vila (2004), na casa dos avós de A Visita (2015), na praia de Tempo (2021) ou na cabana de Batem À Porta (2023), é inegável que o diretor, através do seu senso geográfico, localiza e controla sua encenação com maestria e cria a partir disso verdadeiras panelas de pressão que não raro culminam em uma manifestação da espiritualidade, uma renovação de fé e uma crença no poder do coletivo.

Em Armadilha (2024), vemos dois Shyamalan. Um que muitos de nós reconhecemos e outro sobre o qual ainda não tínhamos ouvido falar. De um lado, estão as suas reconhecíveis habilidades em deter o controle referenciado, transformando a premissa simples do filme em uma crescente cada vez mais empolgante através da sua habilidosa maneira de estabelecer uma encenação precisa (planos zenitais, planos abertos, closes fechados e até o uso de split-diopter em perfeita harmonia) e, do outro, está um irreconhecível ímpeto do diretor em temática e formalmente abandonar possíveis manifestações de fé e crenças na coletividade em detrimento de fixar os dois pés no chão rumo a um thriller cômico muito direto, centrado em um único indivíduo moralmente questionável e com um final tão libertador quanto pessimista (quando comparado aos seus dois últimos trabalhos) sobre a sociedade do espetáculo e a sua natureza farsesca.

No filme, o personagem de Josh Harnett é um pai afetuoso e a filha é uma adolescente comum que anseia pelo momento em que verá seu ídolo pop pela primeira vez. Mas esse é apenas um lado dessa história. Do outro, estamos diante de um serial killer chamado “Açougueiro”, conhecido assim por cortar suas vítimas em pedaços, e sobre o qual todos os esforços policiais de uma cidade estão depositados na esperança de capturá-lo durante o mesmo show. As duas faces de um mesmo homem. Desde o primeiro momento, o filme não faz a menor questão de disfarçar que se trata da mesma pessoa, pelo contrário, Shyamalan faz uso do conflito moral que isso gera no espectador para desenvolver sua trama, ainda criando comicidade através dessa aparente contradição.

Vindo do teatro, o gênero da farsa é precisamente caracterizado pela forma direta com a qual desenvolve sua trama, com exageros, inverossimilhanças, valores morais distorcidos, hierarquias desrespeitadas e zero intenção de transmitir uma mensagem moral. Qual melhor cenário para desenvolver uma trama farsesca, especialmente dentro do cinema, que aquele dominado pelas telas do showbiz? Um show de música pop, não fosse uma mega distração da realidade em si, como é o cinema, ainda é uma manifestação fática do que há de mais mentiroso na indústria do mundo. Eis um terreno fértil que traduz a essência da sociedade do espetáculo, trabalhada visualmente pelo diretor através das inúmeras telas presentes neste filme, as quais hoje mais que nunca promovem a distração e, pelo mesmo motivo, podem deixar escapar o alvo do jogo de gato e rato bem debaixo do próprio nariz.

Se muitos achavam que Shyamalan era uma espécie de Spielberg da atualidade, com seus filmes que resgatam a fantasia no cinema contemporâneo, hoje depois de um filme extremamente maneirista como esse, com direito a uso de split-dioper, muitos se questionam se na verdade não estaríamos diante de uma variante de Brian De Palma dos anos 2020. De fato, o uso controlado dos espaços é algo muito mais próximo de um Festim Diabólico (1948), e por sua vez, um Olhos de Serpente (1998) do que de um E.T. O Extraterrestre (1982). Mais que fantasia ou renovação de fé, o cinema de Shyamalan parece hoje ser sobre perspectiva, controle e farsa – o que poderia explicar a controvérsia sobre o que muitos pensam ser ou não o seu cinema.

Nesse sentido, defendo que Armadilha é um filme que formalmente reflete tudo que seu protagonista e arrisco dizer, o seu diretor, representam para qualquer um de seus espectadores: a dubiedade, a controvérsia. É um filme maneirista e formalmente arriscado em muitas escolhas, ainda que na mesma medida seja protocolar em suas várias conveniências. Trata-se de um filme familiar para os que conhecem o diretor, mas ainda é estranhamente diferente na forma como lida com seu desfecho.

É um thriller cômico que segue uma premissa realista, mas ao mesmo tempo se utiliza de tantos absurdos que corre o perigo de ser visto como fantasioso demais para aqueles que estão acostumados com saídas mais facilmente justificáveis. É autoconsciente da sua tendência ao absurdo, descompromissado e despretensioso, afinal é mesmo uma farsa e por isso também não se leva tão a sério. Por essa razão também chega a ser inconsistente algumas vezes, como quando a trama abandona o ambiente do estádio, controlado e bem apresentado, e migra para outros lugares os quais acabam não justificando uma tensão tão profunda e potente quanto o primeiro, no entanto, ainda tendo a acreditar que o saldo é positivo.

Não é exatamente o que ninguém esperava, mas para um diretor que surgiu ainda no milênio passado, estar fora da zona de conforto em uma indústria cada vez marcada pela reciclagem significa arriscar e acredito que ele fez isso, mesmo que significasse posicionar o filme em um limiar complicado tanto para os fãs quanto para os críticos e espectadores de ocasião. É um filme que tende a crescer a cada revisita, divertido e dinâmico, é um daqueles que ainda fará com que muitos mordam a língua sobre o trabalho do diretor. Algo que eu acredito que não vai tardar.

  • Nota
3.5

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