7ª Mostra “Lugar de Mulher é no Cinema” – Mostra Luas
Esta é a segunda parte da cobertura da Mostra “Lugar de Mulher é no Cinema”. A mostra Luas se concentra na curadoria de obras mais adultas, com temas mais sensíveis e de impacto social.
FILME: QUARTA-FEIRA (2024) – Recife – PE
Direção e Roteiro: Maria Odara
Maria Odara se coloca como uma voz potente ao narrar, com seu jogo de luz e sombras, poemas e poesias de própria autoria para demarcar o lugar de “travesti, preta e pobre” como cita na abertura de seu monólogo, e se questiona dos preconceitos, do vazio de lugar. Questiona o amor que se mistura com a violência, e do vazio das palavras as vezes direcionada, e encerra seu ato com a finitude, talvez melhor do que o viver, já que se vê atravessada por sons e sentidos que não seus.
O monólogo, que poderia também representar uma peça de três atos, é simples, mas verdadeiramente fixante e hipnótico, buscando nossa atenção às palavras e seu sentido na performance. A luz que apaga e acende conta de momentos piores ou menos ruins, a depender do que veem a seguir, e por fim, um registro belo da finitude ou do desejo de como ela deve ser, ou do ritual, que aconchega e cria sentido, já que até então, tudo parecia não ter. Maria Odara é o destaque de si, e isso é feito com uma maestria hipnotizante de apenas 10 minutos.
FILME: CABANA (2023) – Belém – PA
Direção e Roteiro: Adriana de Faria
Será necessário fugir até quando? Parece ser desse ponto de partida que Adriana de Faria, no seu ótimo “Cabana”, nos coloca enquanto espectadores. Voraz e urgente, o curta-metragem aborda a perseguição de populações tradicionais e escravizados ainda na época da colonização pelos portugueses. Existe algo magnético no curta de Faria que fica difícil elaborar em poucas palavras; silêncios gritantes e vozes abafadas; a sobrevivência no fio da navalha; um não-lugar que parece impossível de achar.
“Cabana” mostra um apuro técnico, estético e narrativo incrível de Adriana de Faria. Suas personagens que dominam a cena, Isabela Catão e Rosy Lueji, entregam uma urgência cortante e angustiante do apuro de sobreviver. Curiosamente ao longo da rodagem, parece que o filme de Adriana, por mais que seja ambientado no século XVIII, se passa em pleno 2024. E isso não é só uma sensação, é assim que ela finaliza sua peça cinematográfica, uma fuga que não tem fim, um lugar ainda não encontrado e com uma angústia que parece não cessar.
FILME: O PRAZER É TODO MEU (2023) – Florianópolis – SC
Direção e Roteiro: Vanessa Sandre
Nada mais transgressor do que a liberdade do próprio corpo. Vanessa Sandre consegue com maestria e habilidade, contar uma história pouco comum no registro cultural: os prazeres da velhice, especialmente os prazeres do corpo feminino e da própria sexualidade. Propondo uma discussão cheia de bom humor e descoberta, o curta-metragem aborda o prazer feminino a partir do orgasmo, tema tratado ainda como tabu pela sociedade.
As qualidades técnicas de Sandre, junto a sua atriz principal, Margarida Baird, são reconhecíveis de sensibilidade e alegria ao trazer para a discussão a rotina monótona da velhice, como se ela fosse a regra, e descontruir com bom humor e transgressão a ideia de finitude sem reconhecimento dos prazeres do próprio corpo. Amélia, nossa protagonista, se aventura junto com sua amiga Adelaide (Arly Arnaud), na sensação explosiva de se perceber como merecedora de prazer para além do que as regras sociais impõem. Divertido, honesto e delicado, “O Prazer é Todo Meu” se aventura sem medo e sem tabus pelos caminhos do envelhecimento e do prazer feminino e é lindo.
FILME: A FAÍSCA (2024) – Salvador – BA
Direção e Roteiro: Gabriela Monteiro
Laços de amizade podem ser mais fortes do que podemos imaginar. Gabriela Monteiro consegue com seu curta-metragem de 20 minutos, estabelecer com graça e simpatia, afetos que sustentam grandes dores, como a objetificação, o racismo e as tragédias da vida urbana. Embalados pelo samba e o som do berimbau, o filme de Monteiro elabora as dificuldades do amor por mulheres negras, desmistificando o romantismo exacerbado que não encontra ligação dentro de vivências que atravessam questões de gênero e raça, por exemplo.
“A Faísca” parece um ensaio de algo maior, com potencial a ser explorado em um longa que seria muito bem-vindo. Além dos belos cenários que pinta em tela, seria fantástico acompanhar mais momentos de descoberta e fortalecimento dos laços de amizade que se nutrem a partir da irmandade, do reconhecimento de vivências e culturas em comum. É notável a destreza de Gabriela Monteiro em contar uma história de sustentação das tragédias do cotidiano com o apoio de irmãs de vida e dos laços sociais. Talvez assim seja possível construir, apesar das infelicidades que podem dominar o viver, laços de amor inspirados e inseparáveis.
FILME: AGUYJEVETE AVAXI’I (2023) – São Paulo – SP
Direção: Kerexu Martim / Roteiro: Kerexu Martim
Funcionando como uma obra cinematográfica e como um belíssimo registro histórico, “Aguyjevete Avaxi’i” acompanha a plantação de sementes tradicionais de milho do povo Guarani M’bya na aldeia Kalipety. É interessante a abertura com um ritual que diz do registro oral da cultura e do retorno de sementes tradicionais na região, após a devastação da terra pelo plantio seguido de monocultura feito pelo homem branco.
O registro se limita a apresentar a chegada das sementes, o plantio e a colheita possível, e é sensível ao trazer para junto do registro as crianças da aldeia. Existe naquele momento, a passagem da cultura através da oralidade e especialmente através da participação de todos os moradores na recuperação da cultura. Focando exclusivamente em voice-over, o que auxilia no foco da imagem, a exceção aberta porKerexu Martim fora da narração são as crianças aprendendo e perguntando sobre a importância e a própria história. “Aguyjevete Avaxi’i” é a demonstração de sensibilidade da realização de Martim, aliada a um avanço histórico fundamental da cultura.
FILME: CIDA TEM DUAS SÍLABAS (2024) – Natal – RN
Direção e Roteiro: Giovanna Castellari
“Cida tem duas Sílabas”, curta-metragem de 20 minutos, é uma excelente história que aborda o analfabetismo, a exploração do trabalho e descoberta de um novo mundo de cidadania e direitos a partir da alfabetização. Com uma performance bárbara da atriz Mariana Muniz, a direção de Giovanna Castellari é muito eficiente em colocar na tela os sentimentos de deslocamento e aflição que nossa personagem Cida vivência. Uma nova rotina de trabalho e peso de não saber ler, mas sentir que algo não está correto nova configuração imposta. É louvável o feito da direção em transmitir todos esses sentimentos sem falas, apostando exclusivamente nos recursos da imagem e da atuação expressiva para comunicar suas ações.
É um caminho que é cheio de angústia e adversidade muito bem narrado pela direção de Castellari, que consegue estabelecer com planos fechados a aflição, e ao final, um plano crescente de enfrentamento. “Cida tem duas Sílabas” aborda com muita categoria e eficiência uma história infelizmente muito comum no Brasil: o analfabetismo na vida adulta e de como pessoas má intencionadas acabam tirando proveito dessa situação. É a partir de um tema sensível e de grande mobilização social, que a direção de Giovanna cria uma saída muito interessante e até emocionante, apostando no enfrentamento da estrutura de abuso trabalhista e na manifestação da liberdade. É a partir da emancipação de Cida, ao conseguir ler e se inteirar de seus direitos como cidadã e trabalhadora, que a tensão exprimida durante os 20 minutos acaba por encontrar transformação, ainda que venha com um pouquinho de alívio e leves toques de melancolia.