Furiosa: Uma Saga Mad Max condensa a arte de fazer cinema
Artigo

Pelas mãos de George Miller, Furiosa: Uma Saga Mad Max condensa a arte de fazer cinema

É fascinante o que George Miller, um senhor de 79 anos, fez com a franquia Mad Max, especialmente depois de “Furiosa: Uma Saga Mad Max” que chegou recentemente para aluguel digital. Um diretor que de 1979 a 1985 estabeleceu em três filmes um futuro pós-apocalíptico em que a água e a gasolina eram escassas e a ordem social tinha ido para o espaço; em seguida nos contou a história de um porquinho falante em Babe – O Porquinho Atrapalhado (1995); em 2006 apresentou ao mundo o filme de um pinguim que sabia sapatear com Happy Feet; e em 2015 reapareceu com Mad Max: Estrada da Fúria, se transformando no retorno mais triunfal de uma franquia no cinema e garantindo, pelo menos na minha opinião, a posição de um dos maiores filmes do século XXI.

Toda essa introdução para dizer que George Miller é um diretor versátil e que entende muito de cinema, especialmente do cinema de espetáculo e ação. Poucos diretores têm a compreensão de espaço, profundidade, domínio de tela e decupagem quanto ele pois todos os planos são milimetricamente estudados e desenhados antes das filmagens. Agora em 2024, o espetáculo da ação é fantástico, enérgico e tão delirante quanto o antecessor de 2015 e une a crueldade do deserto a uma vingança construída pacientemente sem deixar de lado as concessões violentas pelo bem da ação. A escolha de planos mais longos, a renúncia aos cortes rápidos, planos abertos para a compreensão da ação e uma narrativa coesa e funcional fazem de “Furiosa” um espetáculo magnifico de apuro técnico e narrativo.

Acompanhamos a figura icônica apresentada no filme de 2015, Furiosa, que vai da infância à transformação numa guerreira e guerrilheira pós-moderna em tempos apocalípticos. Em “Furiosa”, a personagem tem duas escalações: a primeira quando ainda é criança e adolescente com uma interpretação muito competente e verossímil da jovem Alyla Browne, e depois quem assume o papel jovem-adulta é Anya Taylor-Joy, que a cada novo projeto evidencia sua imensa versatilidade para atuação. Ainda completam o elenco de destaque Chris Hemsworth, como o vilão Dementus, numa performance tão canastrona e caricata que encaixou perfeitamente em seu estilo de atuação. Parece seguro dizer, que assim como o polêmico Mel Gibson estava para Max na trilogia original, Charlize Theron e agora Anya Taylor-Joy estão para Furiosa.

Além de toda a mitologia e construção de universo que Miller fez em “Furiosa’”, explorando outros cenários e estilos, o grande destaque são as acrobacias, manobras, acidentes e design dos carros. Guy Norris, diretor de segunda unidade e diretor de dublês, já trabalha com Miller desde 1982, ano de lançamento de Mad Max 2, e sabe como ninguém operar e trabalhar toda a coreografia de cena e manter o espetáculo no alto, já que tudo continua em movimento e segue uma ordem clara, megalomaníaca e especialmente coesa. No design de produção, antigo colaborador de Miller, Colin Gibson merece destaque, especialmente pelas fases de desenvolvimento da máquina de guerra e a imponência com que os automóveis se desenvolvem com o passar do tempo.

É uma sensação tão arrebatadora presenciar tamanha criatividade em tela, que chega ser impossível emoldurá-la em algo estático; tudo se movimenta com propósito e energia para construir uma odisseia artística e autoral. A escala da ação e a demanda de novos seguimentos com construção de cenários é algo extremamente virtuoso, e toda essa logística pedia uma captura maior, complexa. Mesmo que o filme faça respiros para desenvolver seus personagens e expandir a mitologia – o que pode causar estranhamento após a inquietação de Estrada da Fúria – é a partir desses momentos que é possível sentir o carinho dramático aos personagens, o que ajuda a criar a empatia pujante para sustentar a história.

Para dar sustentação a essa grandiosidade, a direção de fotografia ficou a cargo de Simon Duggan, que expande a tela e faz movimentos de câmera mais inventivos com ângulos muito certeiros. Existe a sensação de uma corrida nervosa que imprime angústia e claustrofobia, e ao mesmo tempo, a destruição e a aridez do deserto precisam de planos abertos extensos para capturar a imensa solidão de uma guerra por sobrevivência. O mérito também passa pelas mãos da montadora Margaret Sixel, que trabalha com o diretor desde Babe – O Porquinho Atrapalhado, e dessa vez divide a função com Eliot Knapman, também conhecido de Miller de outros trabalhos. É importante mencionar todo esse trabalho em conjunto, pois só assim seria possível construir a vingança mais paciente e bem articulada de uma prequel que já se viu no cinema.

Algumas críticas, em especial pelas redes sociais, apontaram falta de refino no CGI – mostrando completo desconhecimento do uso da ferramenta – porém, o que essas mesmas críticas parecem não levar em conta, é a função narrativa que o CGI mais plastificado acaba por ter em Mad Max. Da singela complementação dos efeitos práticos, até a construção de possibilidades em criar ângulos nunca criados, e especialmente, criar o que quer que seja nesse universo. Se olharmos em retrospecto a partir do segundo filme em 1982, o realismo nunca se propôs a ser um estilo estruturante na franquia. O destaque, e por isso a glória de Mad Max ao longo dos anos, é sua intensa habilidade em criar espetáculos plásticos, irreais e essencialmente fabulescos sem perder de vista seu caráter espetacular. “Furiosa” desfruta da liberdade criativa que os efeitos visuais proporcionaram ao cinema, a diferença de tantos outros diretores, é que Miller sabe muito bem o que fazer com isso.

Um ponto de destaque que pouco se fala na nova aventura desértica do diretor, é sua eficiente capacidade de produzir um desenvolvimento dramático muito seguro. Furiosa não teve a infância que gostaria e obviamente não teve o início de uma vida adulta saudável; viu a mãe ser barbaramente torturada e morta por um bando de maníacos delirantes; se viu presa a um sistema de dominação masculina e objetificação das mulheres para bem servir uma casta de malucos sanguinários. É provável que depois de tanto sofrimento só poderia surgir ódio, tristeza e vingança.

Ao escolher a vingança, ainda que paciente, Furiosa abandona o ressentimento, já que para concretizar seu ato precisa sujar as mãos. Nesse cenário, o ressentido é aquele que não tem coragem de atuar para conseguir o que quer, que é destruir o outro que lhe causou o mal, mas como sabemos, não existe espaço para ressentimentos em Mad Max. Como Furiosa não tem mais nada e o mundo ao seu redor também não tem o que oferecer, a única saída é tentar retomar aquilo que lhe era direito, mesmo que para isso ela tenha que renunciar a uma parte da pouca humanidade que lhe restava.

George Miller, junto com o roteirista Nick Lathouris, construíram “Furiosa: Uma Saga Mad Max” em capítulos para contar uma odisseia de sobrevivência. A própria franquia, diferente de outros filmes do diretor, nunca foram sobre esperança, ao contrário, sempre foram sobre o pior que o ser humano é capaz de fazer num ambiente de escassez profunda, em que o pacto social já não existe e o que vale é a lei do mais forte, do mais imponente e, especialmente do mais performático. Mad Max me pareceu, sempre, sobre a tristeza que seria o fim do que conhecemos como humanidade e a desgraça derradeira em ter que sobreviver com o nosso pior. O retorno para casa nunca seria possível nesse cenário pois há casa possível para existir. E mesmo com todo o espetáculo e frenesi da ação chamando mais atenção, “Furiosa” também consegue ser dramaticamente potente, substancialmente ativista e, acima de tudo, uma verdadeira aula de linguagem cinematográfica.

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