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Crítica: Kokomo City: A Noite Trans de Nova York

Kokomo City: A Noite Trans de Nova York – Ficha técnica:
Direção: D. Smith
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2023
Sinopse: O retrato nu e cru da vida de quatro mulheres trans trabalhadoras do sexo, confrontando sua dicotomia com a comunidade negra.

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Escrito, dirigido e montado por D. Smith, o documentário “Kokomo City” é uma surpresa positiva no mundo de documentários sobre a comunidade LGBTQIA+. Acompanhando quatro mulheres transsexuais negras profissionais do sexo em Nova York e Atlanta, o filme da realizadora trans D. Smith é um recorte muito honesto, por vezes cru demais e com muito estilo frente as histórias narradas. De forma interessante, o trabalho sexual, mesmo que seja tratado como parte da vida dessas mulheres, é praticamente impossível renunciá-lo na narrativa, pois ele parece ser indissociável da história delas. O trabalho sexual é a sobrevivência e  garantia de acesso a uma vida razoável, ao mesmo tempo que pode significar o fim da vida; é o fio da navalha.

É sagaz o quanto D. Smith consegue abrir sua primeira obra no audiovisual com uma cena narrada com encenação paralela, em que uma história aparentemente trágica se transforma cômica em questão de minutos. Numa estética preto e branco e com letreiros amarelo ouro, “Kokomo City” se aproxima dos corpos e rostos dessas mulheres e paralelamente mantém uma distância razoável a depender do que está sendo contado. Há transições muito estilizadas que representam a afronta que essas mulheres acabam sendo para a sociedade heteronormativa com o intuído de construir, solidificar e afirmar a identidade dessas mulheres.

Político, humano e subversivo, acompanhamos Daniella Carter, Dominique Silver, Koko da Doll e Liyah Mitchell contando a rotina de trabalho ao mesmo tempo que relatam uma intensa solidão de ser quem são desde a infância. A diretora manipula suas imagens para nos contar histórias extremamente semelhantes, ainda que apresente algumas particularidades. Todas nossas personagens foram expulsas de casa, sofreram violência dos familiares e foram rejeitadas, especialmente após a transição. Mesmo que seja estranho um filho se assumir gay, ainda há certa “tolerância” dentro das famílias, mas quando a questão de gênero se apresenta, a intolerância aliada a violência é letra certa nos afetos.

D. Smith aproveita para debater a questão racial que, como apontam algumas delas, ser uma pessoa preta homossexual traz muitas complicações por não corresponderem ao ideal de masculinidade de homens pretos da periferia norte-americana. Quando esse homem preto comunica sua transição de gênero, agora como uma mulher preta, parece ser inconcebível para aquela família acolher essa “nova pessoa”, logo, a exclusão é a saída, e como a exclusão não é restritiva apenas a família e a comunidade, mas de toda a sociedade, o caminho para a sobrevivência acaba sendo o trabalho sexual. Como Daniella Carter aponta em seu depoimento, um dos mais políticos e intensos do documentário, as mulheres cis pretas já são traídas pelos homens, então, quando o filho comunica que não irá performar a masculinidade esperada, essa mulher e mãe, se sente traída mais uma vez, daí a exclusão.

Mais do que debater a transexualidade, a realizadora debate a masculinidade daqueles que se apaixonam por mulheres trans, ou dos clientes que se relacionam com mulheres trans, e essa é uma perspectiva que ainda não havia sido mostrada com tanta honestidade em tela. Há relatos de intensa coragem sobre assumir o próprio desejo, ao mesmo tempo que há relatos que apresentam alguma hipersexualização dessas mulheres. No geral, os depoimentos das pessoas que se relacionam sejam através do sexo pago, seja afetivamente, há sempre uma ambiguidade que compõe esse discurso de maneira muito interessante, por vezes irônica e ambígua. Durante toda a rodagem do documentário, existe a sensação de eterna corda bamba: há doses de humor frente a tragédia, ao mesmo tempo que há exclusão encarnada de inclusão e uma solidão cortante, gélida.

É inegável a referência a Paris is Burning (1990), um clássico do gênero de documentários que se aprofunda na comunidade LGBTQIA+ e evidência suas particularidades, especialmente da luta por sobrevivência dentro das margens, muito extensas aliás. O que choca, ainda, é que passados mais de 30 anos de Paris is Burning muita coisa não avançou. A exclusão, a solidão e a violência que pessoas queers negras são submetidas ainda permanece, ferozmente. O recorte racial é fundamental para entender essa exclusão, pois apesar dos avanços, é seguro dizer, como evidenciam diversas pesquisas, que uma pessoa LGBTQIA+ branca está propícia a menores violências do que uma pessoa negra.

Discutindo questões como a passabilidade – termo utilizado para evidenciar a percepção do outro, ou seja, uma mulher transgênero pode ser percebida como uma mulher cisgênero –  e uma certa “normalização” da profissionalização do sexo como sendo o caminho mais óbvio para pessoas trans, especialmente mulheres, “Kokomo City’’ atravessa um calvário cheio de poesia melancólica e política. É corajosa a discussão de temas espinhosos como a frágil masculinidade das pessoas pretas do subúrbio estadunidense, ao mesmo tempo que questiona uma sexualidade performática masculinizada, em que desejos que se apresentam fora da ordem heteronormativa só possam ser vividos no sigilo.

“Kokomo City’’ apresenta uma estética estilizada que pode passar a sensação de descompasso com as histórias contadas, mas, felizmente, a realizadora sabe contornar as saídas óbvias do melodrama manipulativo muito comum em documentários dessa vertente já que aposta numa solução irônica e ativista do problema, mas sem deixar de lado a tristeza muito palpável nesse cenário. O tom pop com sons não-diegéticos estridentes, aliados a encenações paralelas deixam tudo mais televisionável sem perder de vista o que precisa ser dito. Por fim, é fascinante o quanto D. Smith consegue contar sua história cheia de estilo, paixão e tristeza, desafiar os estereótipos através do relato duro e cruel de suas personagens reais e afirmar sua identidade como mulher trans e como realizadora cinematográfica.

  • Nota
5

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