Guerra Civil tenta se equilibrar entre o cinismo e o espetáculo - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Guerra Civil tenta se equilibrar entre o cinismo e o espetáculo

É sempre arriscado fazer um filme a quente dos acontecimentos, e além do risco, é preciso um pouco de coragem. Não a coragem no sentido moral da expressão, mas coragem do tato necessário para sentir os desdobramentos dos acontecimentos do mundo. Guerra Civil não é um retrato de um acontecimento real, pelo menos não no país em que é situado, mas é uma ficção mais próxima da realidade do que o mundo precisa nesse momento. Essa linha de proximidade entre realidade real e realidade aumentada, ou ficcionada, é um caminho mais difícil de manejar no audiovisual, pois nem sempre é possível abarcar as ideias e fazer uma elaboração razoável dentro da linguagem cinematográfica.

Guerra Civil é o novo filme da produtora A24, sendo o projeto mais ambicioso em termos de orçamento. Alex Garland, diretor e roteirista de Guerra Civil, já trabalhou com a A24 no fracassado Men (2022), e teve sua estreia na direção com o celebrado Ex-Machina (2014), que levou o Oscar de Melhores Efeitos Visuais. Todos seus filmes anteriores são de baixíssimo orçamento, menos Guerra Civil, que por ser uma aposta nova da produtora, tem chamado a atenção pela escala e espetáculo. Esse é um ponto interessante de Guerra Civil, sua carga emocionalmente espetacular como acontece em vários filmes de guerra, inclusive nos que são antiguerra, que é o caso. Há de se considerar que Garland conseguiu produzir algo genuinamente espetacular nas suas cenas de ação e combate, e com um nível de horror que gera impacto, mas não o choque esperado.

No novo filme de Alex Garland, estrelado por Kirsten Dunst (Lee Smith), Wagner Moura (Joel), Cailee Spaeny (Jessie) e Stephen Henderson (Sammy), acompanhamos os quatro jornalistas na tensão de uma guerra civil nos Estados Unidos, numa roadtrip para a última entrevista com o presidente que está prestes a cair depois da divisão do país em dois lados opostos. O que promoveu essa divisão nunca sabemos, e esse detalhe não informado é o ponto alto de Guerra Civil. A falta dessa informação, em tese, poderia deixar as coisas confusas, mas isso não acontece, já que a firmeza com que o roteiro confia no registro dos fatos pelos seus protagonistas garante a estrutura que acompanhará a rodagem por suas ligeiras duas horas.

Isso faz sentido, já que estamos acompanhando fotojornalistas, que tem por objetivo acompanhar a ação com o máximo de precisão na captura das imagens, a imagem estática que registra a verdade. Planos abertos raramente são usados – com exceção de cenas que dimensionam o tamanho da ação – o que confere um caráter mais íntimo a narrativa, nos aproximando dos personagens em cena. A escolha de lentes objetivas na fotografia de Rob Hardy aproxima demais do espetáculo, promovendo um foco muito claro no que está em primeiro plano, e sempre desfocando o fundo, representando o olhar dos fotojornalistas em um ambiente de guerra.

A repórter experiente Lee Smith, transmite o peso e a quase indiferença de uma pessoa que acompanhou grandes atrocidades humanas. Joel é parceiro de reportagem de Lee e jornalista apaixonado pela adrenalina da guerra. Jessie é a novata que embarca na viagem para aprender a dureza da profissão. Sammy é o coração da turma por ser o veterano, e abraçar com generosidade e sobriedade os acontecimentos, servindo de contraponto ao quarteto. Esses são os personagens de Guerra Civil, e por ser um roadmovie, serão testados de formas distintas para sobreviver e registrar o horror. A escolha do roadmovie é a mais comum nesse cenário, já que é a mais fácil mostrar o que se quer e introduzir cenas de conflito, sendo também a forma mais preguiçosa, pois é mais barata.

Guerra Civil é um filme ambicioso, o que faz dele um longa ambivalente. Ambivalente por tentar se equilibrar nas suas forças pulsantes. Hora entre uma energia violenta e brutal, hora pela ausência de um contraponto ao cinismo recorrente. São personagens meramente funcionais, que devem cumprir a missão de registrar os momentos da guerra, mas o que eles pensam sobre o acontecido simplesmente não existe. Quando acontece, vem como um alerta sobre o risco futuro, que também não sabemos.

O risco de produzir uma ficção tão próxima da realidade, é não conseguir dimensionar a escala de quem acompanha e cair num limbo que cria uma distância indesejada com a narrativa. Mas acertar esses parafusos não é tarefa simples. Por exemplo, no filme She Said (2022), que acompanha a reportagem investigativa do The New York Times sobre os abusos em Hollywood por grandes produtores, especificamente sobre Harvey Weinstein, essa mesma dinâmica acontece. A única diferença de Guerra Civil com Ela Disse é que esse último é baseado em um caso real, mas a encrenca do tempo (passado e futuro) e da falta de dimensão pelos protagonistas é semelhante. Enquanto Ela Disse consegue ser mais eficiente ao investir maior humanidade nas repórteres investigativas, e produzir comentários sobre o horror que acontecia, Guerra Civil, ao não se aprofundar em seus personagens, falha no impacto do choque que buscava.

A falha de Ela Disse foi não ser mais corajoso em avançar sobre os desdobramentos e acabar sendo quase condescendente com outros figurões da indústria, e esse é o risco de fazer um filme de tamanha importância sem um desenvolvimento melhor dos pontos que quer avançar, ainda que aponte os ideais de justiça em seu texto. Guerra Civil ao não desenvolver melhor seus personagens, cai em um cinismo de mostrar, quase como uma ‘’tutela da destruição’’, de que se o mundo não recuperar o pacto civilizatório democrático, cenas como aquelas podem acontecer dentro dos Estados Unidos e em outras democracias ocidentais.

Como a história mostra, os Estados Unidos são grandes desestabilizadores de democracias ao redor do globo, e cenas como as do filme são mais comuns do que se imagina, não dentro da própria casa, mas na casa dos outros. Guerra Civil parece propor, com surpresa, de que seria inadmissível uma nação avançada, que se vangloria por ser a mais velha democracia do mundo, cair na armadilha da polarização e radicalização de extremos políticos e destruir suas estruturas democráticas. Nos Estados Unidos, pelo menos pela lente de Garland – que é britânico – isso parece quase impossível, mas se tornou possível, como se eles, os estadunidenses, estivessem blindados da própria barbaridade humana quando o pacto social é quebrado. E esse cinismo não vai embora depois do primeiro ato, continua até o fim, mesmo escolhendo o espetáculo da guerra para chacoalhar o público e promover o choque que tanto prometeu.

Mas esse choque nunca chega, já que é atravessado sempre por essa sensação de excepcionalidade cínica adotada pelo roteiro e pela direção, que não consegue equilibrar bem suas forças. De todo modo, o espetáculo antiguerra consegue ser eficiente e transmitir sua mensagem de forma clara e objetiva. Sutileza não é o grande destaque, já que está em tela aquilo que se objetivou ao estabelecer o cenário: as consequências da destruição do pacto civilizatório. Essa ambivalência presente, é a força e a fraqueza de Guerra Civil. É forte e impactante, ao mesmo tempo que é cínico e farsesco.

É importante dizer que nada disso constitui um desastre ou demérito. Existem funções próprias para todos, e tudo que se propõe é feito com apuro técnico e estético. Guerra Civil se propõe a ser um registro recortado de um cenário catastrófico mais próximo da realidade do que gostaríamos, e executa isso muito  bem. Mas como apontado, o local e o momento da realização, faz de Guerra Civil um filme que fica na fronteira do cinismo e do espetáculo. Desenvolver melhor seus personagens, poderia diminuir o cinismo que sempre atravessa os momentos de respiro, mas fixar a base do ponto de vista jornalístico, solidifica uma visão estática do registro, representado pela cena final enquanto os créditos sobem. Tratar o jornalismo profissional como uma fronteira heroica, facilita a inserção da narrativa de Guerra Civil como uma boa realidade aumentada em tempos de violência política, já que os fatos acabam se perdendo dentro dos achismos.

O apuro estético e a necessidade de tratar como excepcionalidade uma guerra civil em território estadunidense, não deixa de ser irônico e contar com fortes pitadas de cinismo. Na periferia do mundo, cenas do registro cinematográfico de Guerra Civil, infelizmente, são mais comuns do que podemos dimensionar, logo, não há tanta novidade sobre as consequências do esgarçamento do tecido social. Guerra Civil de Alex Garland chega aos cinemas num momento interessante para os Estados Unidos, mas para o resto do mundo chega com atraso, já que aquele cenário é só mais um dia comum na vida de milhares. Mas serve de alerta, já que a possibilidade da escalada de conflitos sempre esteve aí, até na “maior democracia do mundo”.

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