O algoritmo do ódio: a crítica de cinema na era das redes sociais
Gosto muito dos textos do Luiz Carlos Merten. Sua habilidade de transpor conhecimento da mesma forma como pensamentos em um diário é admirável, O Blog do Merten me lembra como costumávamos usar a internet no princípio, como forma de se conectar com as pessoas mantendo uma natureza genuína, às vezes até mesmo soando descompromissada, mas nunca menos interessante. Seus textos são tão ricos em conhecimento quanto são fluidos e de adorável leitura, como fluxos de pensamento que podem ser engraçados, esclarecedores ou emocionantes a ponto de beirar uma confissão. Em suma, são reais e transbordam amor pela crítica de cinema. Algo que podemos considerar em falta nos dias de hoje.
Ontem, dia 17 de março de 2024, Merten escreveu em seu site algo que me chamou muita atenção. Em um pequeno texto, o crítico desenvolve o seguinte pensamento: “falei aqui no outro dia sobre uma qualidade hoje perdida, a generosidade da crítica. Parece que está na moda bancar o mau, não gostar de nada. Para mim, isso não é grau de exigência, é insegurança”. Insegurança. A palavra que ficou gravada em mim durante todo o dia 18 de março, quando li este texto, e que por isso não me aquietei enquanto não comecei a escrever os pensamentos que você agora lê, sobre críticas negativas, frenesi de redes sociais, má vontade e, especialmente, cinefilia e crítica de cinema.
Dentre uma série de absurdos que tenho lido nas redes sociais nos últimos dias, dois movimentos específicos têm me chamado atenção entre cinéfilos: a tendência da nova geração da cinefilia de procurar na arte um alinhamento moral bastante específico e passar então a validá-la pelo que ela se enquadra na sua própria retidão moral enquanto espectador e, noutro lado, a tendência de uma outra parte da nova geração de cinéfilos de tentar “tirar leite de pedra” de uma obra de arte a partir de uma superinterpretação que busca até mesmo fora do filme formas de torná-lo uma outra coisa, geralmente na tentativa de se colocarem como parte de um revisionismo precoce, uma tentativa de ser avant-garde.
O que mais me deixa curiosa sobre esses dois “movimentos” é que ambos tipos cinéfilos são movidos pela necessidade incontornável de expor esses pensamentos em rede social da forma mais “viral” possível. Ambos se veem fortemente comprometidos a justificar o que pode ser injustificável, a buscar argumentos que mesmo frágeis possam causar o mínimo de frenesi. Algumas vezes, tenho aproveitado esta oportunidade para esclarecer certas falácias que possam ser propagadas – como foi o caso do rapaz que disse que o cinema tinha a obrigação de se apresentar enquanto ferramenta educacional que supriria as lacunas deixadas pelo Estado, alegando inclusive que o cinema teria nascido com tal (absurdo) propósito.
Contudo, enquanto crítica, não posso deixar de compartilhar que ambos os comportamentos me preocupam. A cinefilia e a crítica de cinema não apenas podem como muitas vezes devem ser apaixonadas, o cinema é passional. No entanto, só uma destas pode se dar o direito de apaixonar-se sem justificar tal paixão e nesse caso, de fato Merten está certo: críticos têm mesmo expressado uma espécie de má vontade para com determinados filmes e cineastas. Não que isso seja novo na crítica de cinema, por vezes vimos isso acontecer, de nome como Glauber Rocha a Pauline Kael, vários críticos de cinema já reproduziram o mesmíssimo pensamento.
O que diferencia o momento destes críticos do momento que vivemos hoje, no entanto, é que o ódio por determinado filme ou profissional da indústria direcionado por nós é diretamente afetado pelo algoritmo das redes sociais que privilegia o sentimento mais nefasto possível e, enquanto críticos de cinema e também pessoas que vivem em uma sociedade dita 4.0, acredito que ainda não compreendemos muito bem como o que compartilhamos e o alcance do que compartilhamentos neste contexto pode afetar o nosso trabalho e a compreensão do público sobre a função que desempenhamos.
Não é bem nossa culpa, apenas. O mundo inteiro tem passado por um novo processo de socialização, incluindo uma nova alfabetização: a alfabetização digital. Somos parte desse processo e vivemos em uma era onde as informações sobre tudo, incluindo Cinema, se tornaram dispersas e infelizmente muitas vezes de péssima qualidade. Nesse sentido, compreendo que muitos críticos ou ainda não fazem ideia de quantas pessoas serão atingidas pela sua crítica negativa de determinada obra, ou sabem disso e escrevem grandes absurdos de forma intencional, em busca de maiores números de engajamento. De todo modo, escrevo este texto por acreditar ser necessário repensar a crítica de cinema nesses moldes. Ou pelo menos a maneira como as consumimos.
O que parecia ser uma tendência de cinéfilos, já suficientemente terrível, nos últimos tempos passou a ser algo reproduzido pela crítica de cinema, também. Críticos viraram espécies de “pop star”, dos quais leitores se tornaram fãs. É de se preocupar quando as pessoas que leem seus textos passam a abdicar do seu próprio propósito de propor um pensamento crítico e preferem reproduzir como fantoches aquilo que lhes é dito. O efeito manada das redes sociais se une ao viés de confirmação e isso acabou transformando críticos em meros personagens.
Isso é triste de ver e de viver (aqui faço mea culpa), pois nossa relação com a obra se não diariamente nutrida, pode se tornar cada vez mais empobrecida. Não apenas porque o ritmo de produção imposto para quem trabalha com crítica através das redes é industrial, como também porque a própria proximidade com determinado ambiente acaba por aproximar nosso modus operandi com o da rede. O algoritmo nos influencia e deste nem sempre podemos escapar. Dessa forma é que acredito piamente que estamos perdendo a qualidade que Merten cita, a generosidade crítica, um pouco mais a cada dia.
A existência de críticos de cinema que se deixam levar pelo frenesi das redes sociais, nacionais e internacionais, é um fato. Já aconteceu comigo. Da mesma forma, a quantidade cada vez maior de desinformação sobre cinema e demais absurdos não vai parar de aumentar. O que eu tenho me questionado mesmo é até que ponto a crítica em redes sociais, nos dias de hoje, se deixa influenciar ou não pelo algoritmo do ódio, pela vontade de ser mau, pelos números do alcance e pela insegurança de quem escreve.
Merten, a seu modo, me fez divagar profundamente sobre até que ponto nossa relação com o cinema será ou não afetada pela forma como nosso trabalho tem sido consumido. E eu certamente conheço críticos que recusariam o exercício de pensar o que aqui proponho, especialmente por se julgarem imunes aos efeitos das redes, mas a verdade é que ninguém está. Trabalhando ou não com redes sociais, ter acesso a um zilhão de informações sobre determinada obra antes mesmo do seu lançamento, por exemplo, já provocam exaustão suficiente sobre o tema a ponto de afetar a forma como iremos consumi-la. Mesmo críticos.
Nosso consumo de arte, também da crítica de cinema, e a nossa relação com quem nos lê tem mudado de forma radical, e se portar diante desse novo momento é um desafio que novos críticos enfrentam diariamente. É uma linha tênue entre ter um público ávido pela leitura e pela construção de um pensamento crítico que de fato proporcione alguma visão diferente da obra, e o trabalho via redes sociais que, a fim de se aproximar desse mesmo público, também é tentador em querer nos transformar em personagens de nós mesmos.
O único caminho, imagino, é ler críticos como Merten, que são capazes de nos transportar a um momento único da crítica na internet, quando compartilhar conhecimento sobre cinema tinha mais a ver com o resgate da honestidade, curiosidade, amor pelo cinema e o compromisso de manter-se suficientemente interessante. O necessário para não ser esquecido é apresentar-se tão real a ponto de continuar fiel a si mesmo, construindo uma personalidade inesquecível que não se encaixa nem como personagem de si mesmo, defendendo o indefensável ou portando-se como alguém que incentiva pensamento acrítico, tampouco como sujeito inseguro e mal intencionado. É simplesmente ter apreço por ser quem é, pois quem tem personalidade em terra de algoritmo pode ser o único rei.