Maria Antonieta (2006) e o destino narrado
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Analisando Sofia Coppola: Maria Antonieta (2006) e o destino narrado

Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa primeira série de cinco textos serão analisados os filmes: As Virgens Suicidas (1999), Maria Antonieta (2006), O Estranho que Nós Amamos (2017) e Priscilla (2023). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Sofia Coppola.

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Depois do sucesso estrondoso e premiado de Encontros e Desencontros (2003), e um Oscar por melhor roteiro original, Sofia Coppola se aventurou num romance épico seguindo a trajetória de uma personagem histórica interessante. A Rainha Concerte da França Maria Antonieta, é a personagem análise de Coppola no seu terceiro longa-metragem. O filme é uma adaptação do livro Marie Antoinette: The Journey de Antonia Fraser. Algumas polêmicas cercaram o filme que, pelas minhas pesquisas, giraram em torno da imprecisão histórica de alguns fatos e pelo uso de ‘’músicas atuais’’ num filme de época.

Particularmente acho essas críticas completamente preguiçosas e fora do tom. Se o filme é uma adaptação ele é uma adaptação, caso queira precisão histórica, leia o livro ou veja um documentário. A ficção serve para outras coisas, inclusive para poder brincar com fatos históricos e promover debates, reflexões e tantas outras possibilidades que a linguagem cinematográfica proporciona. No fim do dia, o que importa especialmente, é que Maria Antonieta de Sofia Coppola, venceu o Oscar de melhor figurino e recebeu dezenas de indicações, incluindo a indicação a Palma de Ouro em Cannes.

A HISTÓRIA DE MARIA E A FICÇÃO DE SOFIA

Alguns historiadores alegam que um dos motivos para o estopim da Revolução Francesa (1789), seria a vida devassa, gastadora e pouco comportada de Maria Antonieta, provocando a raiva ‘popular’, além é claro da má administração política e econômica da monarquia pelo Rei Luís XVI que mais a frente e depois de muitas disputas, abriria espaço para um tal de Napoleão. É muito mais fácil colocar a culpa na Maria – por motivos óbvios – do que no seu marido, o Luís XVI, um bunda mole e politicamente burro. Há relatos de que um dos motivos da queda da coroa teria sido por sua permissividade com Antonieta e por não conseguir consumar o casamento logo nos primeiros dias de relacionamento – algo que viria acontecer 7 anos depois – permitindo assim, que ela se esbaldasse em festas glamourosas e ‘’promiscuidades’’. Estamos em 2024, e esse discurso ainda existe, com novas roupagens é claro.

Maria Antonieta é dirigido e roteirizado por Sofia Coppola, lançado em 2006, carrega todo esse peso histórico ao acompanharmos a trajetória repleta de incertezas, luxo e licenças poéticas – a cena antológica e memorável do All Star lilás e a trilha sonora, são bons exemplos – de uma figura histórica pouco apreciável entre historiadores e biógrafos. Aparentemente sem querer (como se ela pudesse escolher), e seguindo sob forte rearranjo político de forças, Maria Antonieta, papel mais uma vez brilhante de Kirsten Dunst, é forçada pela mãe a se casar com o filho do rei da França, o tal Luís XVI, vivido por Jason Schwartzman. Maria é austríaca e, logo de saída, se vê obrigada a abandonar seu cachorro e no primeiro encontro e trocar de roupas no meio de um aposento improvisado.

Sua história e ligações afetivas ficarão para trás, não há retorno. Ao chegar no palácio que viverá com seu futuro esposo, sem conhecer tamanho luxo, se vê embasbacada com tanta exuberância e fartura. Antonieta parece se deixar levar, já que sua única opção era ficar ‘presa’ naquela situação. Seu destino já estava escrito muito antes dela tomar consciência da própria vida e restava apenas procurar brechas frente a tamanha repressão e controle. Coppola é muito feliz ao fazer esse longo registro da vida de Maria, justamente pela ausência de escolhas e na aposta de contrastes do antes e depois, da solidão e da multidão.

Planos abertos e conjuntos moldam a cinematografia por boa parte do filme. Isso conta do lugar maior do que ela poderia ocupar. Quando está sozinha, ela ocupa todo o espaço, e isso fica claro frente a composição de cenários e planos que poderiam muito bem formar um quadro pintado a mão. Existe um olhar sempre melancólico em Antonieta e parece não haver o que se glorificar ali. É uma vida repleta de pessoas, com todos os luxos disponíveis e sendo atendida em total completude, mas há lacunas de sentido e autoralidade frente ao excesso.

Obviamente, antes de tudo, Maria Antonieta era uma rainha, repleta de privilégios e vendo o povo francês comer o pão que o diabo amaçou enquanto se brindava de luxo e regalias, apesar de sua melancolia e solidão frente a vida, frente a tudo. Porém, há de se ressaltar e acho que Sofia faz isso muito bem, um lugar mais humanizado dessa mulher que tanto sofreu e tanto contribuiu para o sofrimento de outros. A célebre frase atribuída a ela: se não tem pão, que comam brioches, talvez seja um resumo curioso da sua imagem construída, por homens é claro. Ela, pelo que se sabe, não disse essa frase, mas para o momento histórico caiu bem, já que é notório os luxos a que ela estava submetida enquanto o povo morria de fome nas ruas. E há de se criar um bode expiatório para justificar o fracasso da monarquia, e nada melhor que uma mulher, numa época que seu papel era justamente se submeter a condições impostas, seja da alta burguesia, classe trabalhadora ou da monarquia.

PRODUZA HERDEIROS E SEJA LIVRE

Há um contraste interessante que Maria Antonieta aborda. A pessoa que está mais disposta a fazer sexo é Antonieta e não Luís XVI. Ao mesmo tempo que é hilário ver todo o ritual com a benção do clero para a primeira noite como casados e a negação de Luís. Ambos eram adolescentes quando se casaram, então é justificável que não quisessem transar naquele momento, mas isso não interessava, o objetivo era produzir herdeiros. Maria Antonieta era obrigada por sua mãe, com quem sempre se correspondia, ao mais breve possível se envolver sexualmente com seu marido, não porque quisesse, e sim por ser mais interessante politicamente para o reino austríaco.

Todos os interesses eram prioritários acima dos interesses de Maria Antonieta. Inclusive, há espaço para uma rusga interessante entre a amante do Luís XV, pai do jovem Luís, que era sexualmente ‘ativa’, dando base para um contraste e julgamento frente a suposta incapacidade de Antonieta conseguir engravidar, ou seja, não ser boa o suficiente para fazer seu marido desejá-la. As intrigas em que Maria era envolvida, e há de se colocar que boa parte da vida dela enquanto rainha concerte era se envolver e se inteirar das centenas de fofocas envolvendo a nobreza que vivia em Versalhes e arredores, sendo ela, uma das pessoas alvo de tantas fofocas por sua incapacidade de seduzir o marido.

Luís, que nada queria, praticamente passa ileso das críticas, como se ele não também não fosse responsável por não ter um herdeiro até aquele momento. Uma vez resolvido esse problema, há certa liberdade experimentada por Antonieta, que até aquele momento, tinha como maior foco o filho. Bailes e moda se transformam em seu maior interesse, além dos luxos que uma monarquia absolutista poderia comprar. E há também liberdade entre o casal, ambos com suas particularidades e ocasionalmente se reuniam como casal, mas uma vez cumprido a obrigação, novos ares tomaram conta do palácio.

Isso abre margem para um apaixonamento de Antonieta que se envolve num caso com o Conde Axel de Fersen, papel breve de Jamie Dornan, como um galã que conquista a rainha e vivem um breve romance, especialmente no período em que ela se muda temporariamente para a ‘’casa de campo’’ da monarquia francesa. Aquele olhar melancólico e solitário que sempre a acompanhou é deixado de lado pois há algo há se apaixonar, algo que minimamente produziria algum sentido, visto que a escolha do casamento não foi dela.

Mesmo o tédio, famoso companheiro de Maria, parece ser deixado de lado após o respiro de esperança frente ao objeto capturado, ainda que não passasse de uma paixão corriqueira, mas continha todos os elementos fundadores da boa paixão. A idealização do objeto, a completude frente a falta – falta experimentada desde a saída da casa da mãe – e o erotismo pulsante na constituição do desejo. Sofia Coppola filma o desejo de forma encantada, pulsante e especialmente apaixonada. Finalmente existiu algo a ser capturado por conta própria, esse foi o ato de Maria Antonieta, rapidamente vivido, já que em breve sua cabeça estaria sendo guilhotinada numa praça de Paris.

Talvez Maria Antonieta se esbaldasse com tantas festas, gastos, comidas, luxo e moda pois essas seriam as únicas maneiras de ser o que era possível ser. Fazer dessas performances algo próprio, pessoal, autoral e, talvez, por já saber do seu limite logo de saída, e que seria um limite instransponível, uma barreira do não ser, o limite do ser feminino, fez o que fez, ainda que a custa de tantos milhões. Ao mesmo tempo, cabe pensar se ela teria outra opção, abandonar o posto de rainha, adquirir consciência de classe não pareciam cogitáveis naquele momento e convenhamos, não é qualquer pessoa que faria uma troca dessas, não precisamos ser ingênuos atoa. De todo modo, ao fim, ela simplesmente aceitou seu destino já narrado, já dito. Morrer sendo rainha é melhor do que morrer sendo um qualquer na multidão miserável.

Sempre houve um limite que Antonieta poderia experimentar. Apesar desses limites serem extensos, por sua vida luxuosa e pelos acessos que tinha, mesmo com isso, há algo incompleto. Não há a verdadeira liberdade, sendo talvez um respiro ao se apaixonar pelo Conde, mesmo com um fim determinado, e que suas contribuições teriam sido apenas naquilo que concerne a uma mulher daquela época, como cuidar do jardim, promover festas e cuidar dos filhos de vez em quando pois alguém se ocupava disso. Ela aceita seu destino, e isso parece ficar bem nítido na última frase do filme, que é sua. Ao ser questionada por Luís XVI na carruagem em direção a Paris se estava admirando a vista do lago em frente ao palácio, ela simplesmente diz com os olhos marejados: Estou me despedindo.

A ÓPERA POP DE SOFIA

Maria Antonieta sempre foi uma nota de rodapé na história contada. Ela era a gastadora, a rainha do déficit, a promiscua e claro, a mulher do Luís XVI e de vez em quando, rainha concerte da França. Sofia Coppola fez uma escolha muito interessante ao optar por essa personagem histórica e a forma que contou essa história. Planos longos, abertos e sempre com tomadas panorâmicas com muito classe e sensibilidade. E diferente de muitos filmes históricos, que sempre optam por um tom acinzentado e frio, Coppola faz a escolha por cores vivas e quentes em vários momentos, como o rosa pink, o amarelo e um branco gelo brilhante, dando personalidade e pomposidade vivaz naqueles ambientes enormes. Quando ela opta por cores mais frias, como o azul, é para situar a calmaria e aquietação, que se mistura com o tédio em cores areosas.

O terceiro filme de Sofia é grandioso, seja pela captura da figura histórica, seja pela repaginação daquele mundo, e isso está na escolha da locação e figurinos. Maria Antonieta foi filmado no Palácio de Versalhes, após conseguir autorização do governo francês. Todas as indumentárias são extremamente bem-produzidas e fiéis ao guarda-roupa da época, rendendo o Oscar de melhor figurino para Milena Canonero. O design de produção de K.K. Barrett é estupendo, contribuindo para uma imersão naquele período histórico tão opulento e materialmente magnífico, mas repleto de vazios e desperdícios, e tudo isso parece palpável, real.

E por fim, um dos temas mais polêmicos no lançamento da obra, a trilha sonora. Como é possível produzir um filme da figura histórica mais importante do ocidente com músicas pop e indie rock? Parece um absurdo, mas é justamente isso que ajuda a dar originalidade ao tom pop da ópera luxuosa de Sofia Coppola. Artistas como The Strokes, New Order, Bow Wow Wow e The Cure, por exemplo, estão em momentos cruciais de toda a história e ajudam a moldar a personalidade e humor de Maria Antonieta, que vive altos e baixos na sua breve passagem como Rainha de um dos países mais importantes da Europa.

Maria Antonieta por Sofia Coppola não foi bem recebido pela crítica e público. No IMDB recebeu uma nota razoável, 6,5; já no Rotten Tomatoes amargou um tomate podre com 57% de aprovação dos críticos e 56% do público. De fato, há lacunas históricas no terceiro longa de Sofia, mas uma ficção não se propõe a ser fiel, como dito no primeiro parágrafo. Há de suspender a descrença e se entregar a repaginação pós-moderna proposta pela cineasta que se equilibra entre a humanidade de uma figura controversa num momento efervescente da política mundial. Sofia Coppola se propôs examinar a prisão luxuosa de uma mulher e como essa mulher vivia nesse cárcere que tudo podia, ao mesmo tempo que o próprio querer, não era possível. Sofia não isenta sua personagem, nem a monarquia. Ao tratar das questões sociais que pipocavam ao seu redor, todas as frases ditas por Maria Antonieta são irônicas, sarcásticas e especialmente debochadas, e no final do dia, Antonieta era uma rainha e seu destino já estava narrado, e ela sabia.

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