Analisando Sofia Coppola: As Virgens Suicidas (1999) e A Angústia
Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa primeira série de cinco textos serão analisados os filmes: As Virgens Suicidas (1999), Maria Antonieta (2006), O Estranho que Nós Amamos (2017) e Priscilla (2023). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Sofia Coppola.
Freud, na virada do século XIX para o XX, teve uma ideia interessante e que viria ser a pedra fundadora da psicanálise: escutar clinicamente as mulheres. Pela própria limitação do tempo histórico muita coisa ficou de fora, restando aos futuros psicanalistas dar conta de desenvolver a teoria e adaptá-la ao novo tempo. Reassistir As virgens Suicidas à luz da psicanálise ganha um tom mais íntimo, complexo e visceral. Curiosamente, no dia que reassisti a pedra fundadora da filmografia de Sofia, tinha terminado de ler ‘Os deslocamentos do feminino’, livro da psicanalista Maria Rita Kehl, que faz um percurso da feminilidade e da representação da mulher ao longo da modernidade. Foi essa conjunção de fatores do acaso, que me fez mergulhar na filmografia de Sofia Coppola.
AS VIRGENS SUICIDAS (1999), O INÍCIO
O filme que tem roteiro e direção de Sofia Coppola e marca sua estreia como diretora de longas-metragens, é uma adaptação do livro de mesmo nome do autor Jeffrey Eugenides. Acompanhamos através da narração de cinco garotos – registre essa informação – a rotina pouco convidativa e muito misteriosa das cinco filhas da família Lisbon. Mesmo que na escola as garotas pareçam levar uma vida normal, em casa os pais adotam uma postura extremamente conservadora. No auge da repressão, removem as filhas da escola e as mantêm num ‘’cárcere privado’’ que mais tarde cobrará seu preço.
O filme começa a partir da tentativa de suicídio da filha mais nova de 13 anos dos Lisbon, Cecília (Hanna Hall). A tentativa que falhará, por enquanto, faz com que os pais Ronald Lisbon (James Woods) e Sara Lisbon (Kathleen Turner) adotem uma postura mais aberta frente a comunidade, promovendo uma festa de ‘’reintegração’’ de Cecília após seu retorno da internação. É nessa fatídica noite que Cecília realiza seu ato, conseguindo aquilo que tentara mais cedo.
– Você nem é velha o suficiente para saber o quanto a vida é difícil.
– Claro, doutor. Você nunca foi uma garota de 13 anos.
É na narração dos garotos que precisamos confiar. Eles estavam na festa de Cecília, eles presenciaram o acontecimento, e são eles que conduzirão essa jornada perversamente interessante da degradação da família Lisbon. Nessa narração, os garotos nos contam a admiração que sentem pelas meninas e o mistério em torno de figuras tão excêntricas. Isso encontra eco numa dinâmica sexual muito própria da adolescência, em que mistério e fantasia se enlaçam na tentativa de produção de sentido. E talvez seja esse o único momento em que meninos e meninas estarão na mesma posição. Ambos os grupos conseguem criar fantasias sobre a sexualidade, e seus desejos encontram sentido na fantasia. A diferença é que os meninos podem existir no mundo, as meninas não.
Esse me parece o ponto fundador da trama. Eles contam a história delas por elas serem impossibilitadas de contar por si mesmas, e não porque elas escolheram não contar, mas justamente por serem impedidas de produzir a própria história. Por várias vezes, elas se veem barradas de construir algum significante sobre a própria vida. Ainda que negativamente, Cecília encontra a possibilidade dessa construção a partir de si, de forma trágica e indesejável, como argumenta Kehl em seu livro.
Todas as filhas em suas curtas e trágicas passagens pela vida, passam o filme tentando construir algo a partir de si mesmas, e todas essas tentativas serão barradas, fazendo com que a repressão dos pais seja cada vez maior. Há um destaque narrativo sobre a personagem Lux, papel que catapultou Kirsten Dunst aos holofotes. Isso destaca a qualidade e esperteza que Sofia Coppola tem para montar seu elenco, e que garantirá uma parceria por anos com Kirsten. Existe algo na personagem de Dunst que chama a atenção. Sua inocência erótica, produz uma ambiguidade de sensações para o espectador, e em especial para nossos narradores, que se veem capturados por tamanha beleza e ousadia dentro desse ambiente castrador.
Há um ponto de virada que muda a relação da família Lisbon. Após a morte de Cecília, mãe e pai entram em uma depressão profunda, e as garotas parecem mais livres para sustentar algum resquício de vida, mesmo que por um breve momento. Quando Lux conhece o jovem Trip (Josh Hartnett), parece ser a tentativa de produzir algum sentido para si mesma – ainda que através de Trip – fora daquela casa e da relação quase incestuosa com pais. Quando Lux tem sua primeira relação sexual com Trip na noite do baile de formatura e não volta para casa junto das irmãs, o mundo delas – de todas as irmãs sobreviventes – é arbitrariamente encerrado pelos pais. A tentativa parcialmente realizada, mas frustrada no todo, dá origem ao cárcere privado promovido pelos pais.
É nesse momento que as garotas, agora impedidas de ir à escola, começam a se comunicar com os garotos por telefone e por músicas. Isso parece ser o início de alguma construção, mesmo que de antemão saibamos do resultado catastrófico, e que mesmo assim há um intermediário da relação, homens, e a uma nova linguagem, a música. A impossibilidade de se realizarem em si mesmas, produz uma dependência da tutela desse Outro – simbolizado pelos pais – que insiste violentamente em colocar as filhas dentro de uma ordem cristã fetichista. O divino parece ocupar a representação dessa relação impossível, que só se tornará possível caso se renda a esse Outro imaterial, mesmo que para elas isso não faça nenhum sentido. Na verdade, se render a essa lógica seria a mortificação do sentido.
A certo momento da trama, a prefeitura começa uma poda de árvores no subúrbio que os Lisbon moram, e todo um simbolismo se concretiza quando as filhas saem de dentro de casa para formar uma corrente ao redor da árvore que era uma lembrança da irmã mais nova que morrera no início. A poda da árvore parece a representação de alguma resistência e lembrança para as filhas, e uma possibilidade de se libertar como a irmã, ou seja, a marca dela existe e será preservada. O buraco que há na árvore, tampado com cimento, e que antes do seu último ato, Cecília coloca a mão no cimento fresco, parece ter deixado ali seu registro traumático inscrito. Talvez tenha sido a forma simbólica que Cecília encontrou para dar sentido e construir significado sobre viver naquela família e representar sua existência para além do outro. Coppola faz questão de fazer um plano da mão de Cecília no cimento.
Em ‘Deslocamentos do feminino’, Maria Rita Kehl se apoia no livro homônimo ‘Madame Bovary’ de Gustave Flaubert, que na trajetória da protagonista do romance, alienada aos romances mesquinhos disponíveis na época – o que era possibilitado para mulheres –, tenta, com alguma sorte, produzir a partir de si algum sentido que não a coloque em submissão ao Outro, e que não precisasse se render a essa imposição ocupando o único lugar reservado a mulher, que na época seria o casamento, o trabalho doméstico e obviamente, um filho. Essa era sua única possibilidade de realização, decretando assim o fim da sua angústia por não suportar a falta de um falo – sendo o filho esse falo que falta à mulher.
Como Bovary se recusa a ocupar esse lugar – peço licença para fazer um pequeno reducionismo dessa grande obra – ela encontra no suicídio uma maneira de se realizar, sendo esse ato trágico, o ato por si mesma. Como não era possível encontrar um lugar na existência para que seus desejos e realizações de alguma liberdade pudessem existir – apesar da vida dupla que levava –, só existiria, frente a tanta repressão, uma única saída. Produzir algo que fosse a partir de si mesma, a morte. O conflito das Lisbon passa por isso, e como não podiam desejar sobre o próprio desejo, e deveriam se submeter ao desejo do Outro, só restava uma saída que fosse verdadeiramente autoral para pôr fim a angústia, a morte.
O contrário de morte é vida, e nada mais pulsante de vida do que a sexualidade, elemento fundante da vida psíquica. O despertar da sexualidade em As Virgens Suicidadas é uma ameaça, e Sofia Coppola captura esse elemento etéreo com muita sutileza. Lux ocupa no imaginário dos adolescentes, e por vários momentos ela aparece na tela em sobreposição com seu olhar sensual ao mesmo tempo que inocente. A possível perda daquilo que é sagrado e deve ser reservado a um homem certo e no tempo de ‘’deus’’, é o decreto de morte de qualquer desejo que as Lisbon possam vir a ter.
A tranca simbólica das garotas em casa, nada mais é do que a tranca dos desejos em torno do grande Outro que domina, castra e aprisiona. A descoberta da sexualidade e o sexo erótico, são as grandes ameaças para qualquer grande Outro dominador e punitivo, é romper com a ordem incestuosa que produz o prazer do Outro. É a partir da adolescência que se busca confrontar essa ordem primeva, e ser algo para além dessa instituição que convencionamos chamar família. Lux, Cecília, Mary, Therese e Bonnie querem ser sujeitas de desejo, ser algo para além do pai e da mãe, querem romper com a ordem social vigente naquela família.
No filme de Coppola, essa ordem social vem através do sensacionalismo da TV. Em meados dos anos 70, que o filme é situado, o suicídio era dado como algo escandalizado, fruto de uma perversão da juventude mal-intencionada e rebelde. Quase como um desatino para uma geração que ‘’não sabe o que quer da vida’’ e não se encaixa à força numa ordem repressiva advinda dos baby-boomers. Esse medo generalizado, e a dificuldade de compreender a nova geração que se formava com novos anseios, encontra eco num crescente fundamentalismo religioso estadunidense em que a classe média branca busca refúgio, já que não consegue construir para si alguma identidade, restando buscar nas mais repressivas ideologias algo que diga sobre elas.
A estreia de Sofia Coppola em longa-metragem é genial, pois consegue, com um material denso, contar uma história repleta de interpretações explicitas e não-explicitas encontradas no subtexto. A escolha de close-ups na personagem da Kristen Dunst parece muito acertado pois reforça a sexualidade tomando corpo, e que esse mesmo elemento será responsável pelo fim derradeiro da liberdade que tanto ansiavam. Além de Lux ser a mais propensa a tomar riscos na possibilidade de buscar algum lugar para si – o cigarro escondido na escola – é a primeira a apresentar um garoto para os pais, numa cena constrangedora.
Lux, em tese, é a protagonista, apesar das questões que tenho em colocar sobre ela essa função narrativa, já que a estrutura familiar dos Lisbon parece ser a grande protagonista dessa história – incluindo pai e mãe. De todo modo, recai sobre Lux movimentar a família ao destino que o título do filme já anunciara. No período que elas passam trancafiadas em casa, Lux consegue fazer algumas escapadas e sempre aos olhos atentos dos garotos. Finalmente convocados a participar ativamente dessa história, quando começam a se comunicar por telefone, as Lisbon agora parecem buscar, através deles, uma saída – o que os garotos entendem como um plano de fuga.
Até o momento do contato direto, os garotos eram os narradores e grandes observadores da dinâmica de funcionamento da família Lisbon. Agora, na verdade, como bem aponta Maria Rita Kehl em seu livro, eles se transformam em instrumento na mão dessas mulheres, que os utilizam para contar suas histórias, mas especialmente os convocam a serem testemunhas do grande ato final, o suicídio. Esses garotos, agora ficam com a função de sustentar a angústia de nunca esquecer a história dessas mulheres, e preservarem – já que para elas esse era o único jeito de se fazer existir – a existência a elas negada.
Por todos esses fatores que barram e impossibilitam as Lisbon, através da ingenuidade e desejo dos garotos, elas tentam encontrar um lugar, no confuso não-lugar, que foram empurradas pelo contexto familiar e cultural. Ser aquilo que desejam é impossível, e ser aquilo que não desejam também é impossível. O único ato capaz de condensar a existência dessas personagens, é a morte, essa representação que diz delas mesmas. É cessar uma angústia e um sofrimento que, naquele contexto, nunca teria fim. E como sempre acontece nesses casos, todo o resto ao redor desmorona, vira ruína. Desejar frente a vida para as mulheres, sempre parece ser a partir de brechas quase imperceptíveis na maioria dos casos, e uma constante batalha de infinitas costuras psíquicas para produzir um ato de autoria própria em vida e na vida.
SOFIA, A AUTORA
As Virgens Suicidas é um excelente início de carreira para Sofia Coppola, e foi sua saída do lugar de tutela masculina, no caso o pai, Francis Ford Coppola. As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros – esse vamos deixar de lado na análise – vão consolidar Sofia Coppola como uma diretora e roteirista com personalidade própria e com os próprios entendimentos sobre o cinema e o mundo. Sofia Coppola encontrou seu lugar no mundo, e parece que as histórias que conta e deseja contar passam por essa mesma jornada.
Vários desses elementos irão se repetir na filmografia de Sofia Coppola. Há um recorte muito interessante da mulher branca de classe média do subúrbio estadunidense que Sofia se concentra, e sempre funciona. Maria Antonieta e O Estranho que Nós Amamos parece fugir à regra pela ambientação, mas olhando bem, a dinâmica da mulher frente ao masculino ainda é de submissão e tutela, que se mistura com o desejo e a fascinação, sensações ambíguas que convivem relativamente bem até pararem de funcionar e encontrarem na próxima esquina a destruição. O que fascina na filmografia de Sofia Coppola é sua capacidade em tratar dessas ambiguidades tão subjetivas, íntimas e por vezes inconscientes e pouco palatáveis na linguagem cinematográfica para a imensa maioria dos diretores. Felizmente Sofia consegue, e que bom que ela consegue.