Crítica: Jane por Charlotte
Jane por Charlotte
Direção: Charlotte Gainsbourg
Roteiro: Charlotte Gainsbourg
Elenco: Jane Birkin, Charlotte Gainsbourg, Jo Attal.
Sinopse: Charlotte Gainsbourg olha para sua mãe Jane Birkin de uma maneira que ela nunca fez, superando um senso de reserva. Usando a lente de uma câmera, elas se expõem, começam a se afastar, abrindo espaço para uma relação mãe-filha.
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Vez ou outra me pego pensando na tamanha ironia que é, na era da ostentação das redes sociais, que a bolsa Birkin seja mais conhecida que o nome e a carreira de quem a inspirou: Jane Birkin. Para jovens da geração Z, é muito mais provável que pensem que Birkin seja símbolo de status da marca Hermés (e que saibam muito mais que qualquer pessoa na história como faz para consegui-la um dia), do que de fato pensem no ícone multifacetado que a inspirou.
Jane Birkin foi atriz, modelo, cantora, ativista, referência na moda, mãe (digo isso porque era algo que ela via como um prazer imenso, uma razão de viver) e muito mais, bem mais que um rosto bonito – como muitos antigamente normalizaram dizer. Charlotte Gainsbourg, sua filha, e mais uma enorme quantidade de admiradores ao redor do mundo que conheceram sua imagem por um ou mais dos seus variados ofícios, sabiam que acima de tudo Birkin era uma mulher extremamente inteligente, gentil e passional.
Já perto da morte da mãe, Charlotte (Ninfomaníaca, Anticristo), decidiu declarar-se para a mãe da forma que mais compreendia: através da arte. Sua forma de deixar as pessoas reconhecerem o legado da figura de Jane Birkin para além da mídia, foi abrindo sua casa e suas confissões para o mundo. É dessa forma, por meio de um documentário deveras poético, que a filha marca o espectador com a imagem de uma mulher forte, sim, mas ao mesmo tempo extremamente fragilizada e constantemente assombrada pelos fantasmas do seu passado.
Existe uma vulnerabilidade imensa na figura da mãe que se transmite através de uma sessão de fotos sem maquiagem (com momentos belíssimos de fotomontagem), um close no olhar melancólico, um corte seco no tempo que interrompe um choro por vir. Com um amor indissociável do ofício de direção, Gainsbourg é capaz de elaborar um dos retratos mais dignos de sua mãe que o mundo já viu, traduzindo a máxima de que toda direção é um recorte do olhar de quem filma, e o seu é puro amor. Honesto e singelo.
Uma marca do cinema francês, “Jane Por Charlotte” não está interessado em fazer-nos esquecer do tempo. Pelo contrário, algumas cenas filmadas em longos planos, que parecem intermináveis, fazem-nos sentir dentro da sua casa de praia, nos momentos com a neta, nas confissões na cama ao lado da filha. Hoje, assistindo o filme em 2023, meses após a sua morte, o filme faz muito mais sentido como uma obra que pretende prolongar ao máximo o tempo que poderíamos ter com a sua presença. Em vida.
Existe uma potência dramática muito maior no monólogo final hoje, do que poderia ter no seu lançamento, em 2021. No clímax do filme, em uma cena filmada à distância onde Birkin anda com pés na areia, Gainsbourg se declara nos fones de ouvido para a mãe e deixa claro: não estou preparada para dizer-lhe adeus. Quem poderia estar? Eu me perguntei. Filhas e filhos vivem sem mãe por não ter outra alternativa, é doloroso de todas as formas. Depois de uma hora observando a relação e a ligação entre elas, sabemos.
Fica claro que a sua melhor amiga se foi, apenas alguns anos depois do lançamento da obra, mas é bom que haja o registro da homenagem que foi feita antes disso. Me deixa pensativa no quão bom é poder usar a arte, especialmente o cinema, como uma forma de dizer adeus inclusive para aquilo que não sabemos dizer. É forte demais, eterno demais, exatamente como penso que Jane Birkin deve ser lembrada. Muito além de uma bolsa qualquer.