Crítica: Ferrari - 47ª Mostra de São Paulo
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Crítica: Ferrari – 47ª Mostra de São Paulo

Ferrari
Direção: Michael Mann
Roteiro: Michael Mann, Troy Kennedy Martin
Elenco: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Gabriel Leone, Daniela Piperno, Sarah Gordon, Patrick Dempsey, Jack O’Connell.
Sinopse: Em 1957, Enzo Ferrari está sofrendo o luto pela morte do seu filho, um casamento em crise e as preparações de uma corrida que vai mudar o destino da sua empresa.

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“Ferrari” antes de tudo é um filme sobre mausoléus. Sobre morte, morte, morte. E seus rituais macabros passando de filho pra filho. De irmão pra irmão. O quarto do filho é filmado como uma cela de cadeia, enquanto o outro herdeiro se encontra no cemitério. A família, os relacionamentos, são meros detalhes sociais e negociatas para os Ferraris ou então passagens fadadas ao fracasso e a mentiras. A única companheira definitiva é a morte. Só resta ela. O resto se esvai com o tempo ou é tomado por essa força da natureza que assassina tudo ao seu redor alcançado o resto do mundo. A indústria, o império, continuam como fontes de isolamento. A atenção do filme está toda centrada em extrair essa ideia. O pleno domínio dessas imagens é como dominar os carros.

Michael Mann – inteligente como é – não está interessado em detalhar a história de vida de Enzo Ferrari (tratado por Mann como um capitalista egoísta, frio, infiel e insensível, mas também fascinante e apaixonado pelo que faz, a composição no ponto certo de Adam Driver lembra a de um vampiro entre muitas sombras e luzes da Itália que nunca chegam a entrar completamente) e por isso foge completamente de todas as armadilhas de uma “cinebiografia”, o que esse filme felizmente nem chega a ser. Elas são subvertidas e seu interesse é muito maior que esse: é fazer um melodrama – com aquele sarcasmo e gosto pelo calor humano presentes na obra de Mann – sobre o rastro de morte contínuo que esse homem deixa desde sempre, por onde passa e por tudo que ele toca. Rastro esse que vai o acompanhar para sempre em toda relação que ele mantiver e cultivar.

Enzo é mais um típico protagonista do Mann desse projeto artístico que o cineasta tem desde os anos 80: alguém com um psicológico destrutivo e quebrado que tem em si mesmo o seu pior inimigo, que segue à risca uma ideia de masculinidade toxica e que acaba tendo no seu trabalho o refúgio do mundo que ele não sabe lidar, mas também uma prisão. A amante que ele diz amar no final das contas para ele é só um objeto e uma forma dele consolar a si mesmo sobre o tipo de pessoa que é, enquanto sua esposa é uma lembrança constante de uma série de dores que ele não consegue lidar.

Um filme de relacionamentos muito densos e fúnebres que faz um uso de uma câmera perseguidora e de um voyeur que tenta se esconder enquanto promove suas andanças por diferentes tipos de prisões entrando desde o começo e investigando atentamente e ativamente cada detalhe dos rostos dos seus personagens, os colocado em foco máximo, sempre muito próxima a eles como se tivesse os sugando, mas também cruza com cuidado extremo pelos carros, os seus cômodos e a arquitetura daquela Itália (o que me lembrou até “O Siciliano” do Comino) em como ela se coloca na ação dos ambientes num cuidado de planos inalcançável.

Detalhes e ações se colidem na filmagem, narrativa e montagem – a vida profissional e pessoal – do mesmo jeito que aqueles veículos se batem si e são alvos da atenção o tempo inteiro nesse melodrama sob rodas. É impressionante como a encenação de Mann, a sua mise en scene, é algo sobrenatural. Fantasmagórico. Que eleva situações das mais simples até as mais sanguinárias num entendimento de imagem e composição único. Até aqui quando ele segue uma construção e linguagem mais “clássica”, contida e introspectiva em como dirigi o seu filme, esse deve ser um dos filmes do Mann que mais se encaixa nesse quesito numa secura que acho que ele nunca tinha chegado perto até para justamente tratar desse melodrama sombrio (longe do tom edificante desse tipo de filme), fugindo da radicalidade atmosférica de rompimentos estilizados ou experimentais de muitos dos seus filmes, porém o seu trabalho de câmera, de construção cênica e atenção formal para o imagético continua altamente expressionista, vigoroso, vivido, límpido, criativo e atencioso a cada cena que o filme está registrando ao seu redor mantendo a coerência estilística da sua obra – além da narrativa que é muito evidente – com enquadramentos e planos que parecem saídos de “Inimigos Públicos”. A força monumental, expressionista e bela de Mann como um esteta continua aqui, o que muda é apenas como ele a emprega.

A opera, o som estritamente e infernal dos motores, o espetáculo visceral das sequências de carro que ele filma com um prazer violento, as suas subjetivas, suas filmagens da velocidade, a sua rapidez constante, as estradas, a preocupação com uma autenticidade documental da fotografia, os paralelos épicos da montagem e a brutalidade sem rodeios do filme adquirem um tom ultra poético e sentimental típico do Mann que percebe a beleza triste e violenta na destruição ao seu redor. No vazio assassino que esse homem carrega enquanto lida com o seu império que tem um sabor até um tanto quanto “provinciano”. Cenas como a Penelope Cruz (numa composição impecável e magistral que engole o filme) entrando na casa da amante do seu marido são amostragens da razão do Mann ser tão acima de tudo que a gente tem no cinema hoje em dia.

  • Nota
5

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