“Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você” trata gigantes de forma pequena e medíocre
Talvez tenha algo a ser deixado bem explicado logo de saída para não ocorrer em confusões desnecessárias. Elis Regina e Tom Jobim são gênios magníficos da música brasileira, isso não há dúvida, nenhuma. Dito isso, o documentário que aparentemente propunha contar a história de um dos maiores discos de todos os tempos, e dos dois maiores artistas da vida artística brasileira, erra por tratá-los de forma protocolar e medíocre. Medíocre não significa ruim, apenas que ele está na média. Duas estrelas e um disco fenomenal não mereciam nada medíocre, e sim, um espetáculo, e infelizmente não temos espetáculo – escrevo isso com o coração partido.
Escrevendo essa introdução parece que estou saindo na defensiva, e talvez seja verdade, mas é justamente para começar a embasar o porquê de colocar um documentário cheio de potencial numa posição medíocre. Somos embalados o tempo todo pela trilha sonora do álbum magnífico que conta com imagens inéditas da ida de Elis até Los Angeles, lugar que gravaram o álbum e os bastidores dentro do estúdio. Todas essas cenas são intercaladas com depoimentos de pessoas que participaram desse grande acontecimento no ano de 1974. Dos músicos ao pessoal da gravadora. A gravação dos depoimentos é extremamente protocolar. Câmera estática com poucos movimentos e quando muito, um zoom nas mãos dos depoentes sem muito propósito.
A roteirização dos acontecimentos que logo de início divide a trajetória do Tom e depois corta para a trajetória da Elis, ajuda a contextualizar quem eram os dois e suas carreiras, mas investe um pouco mais de tempo para contar a história de Elis, quase como uma justificativa para a união desses dois tão diferentes. Isso é positivo, pois não trata o espectador de maneira burra e supõe que essas duas figuras icônicas já são conhecidas do público. Por outro lado, a lógica linear se perde em algum momento mesmo com auxílio dos letreiros que sinalizam o ano. Isso acontece de forma abrupta e quase desnecessária pois somos retirados do diálogo de dois mestres e somos jogados a um depoimento não muito interessante ou para a execução de uma música inteira do Tom – momento específico com o Frank Sinatra.
Além das quebras de ritmos e imersão, por vezes o documentário não sabe qual o tom está investindo. Por vezes Jobim é tratado como um deus, enquanto Elis é tratada como uma aprendiz. Logo em seguida parece colocar Elis como controladora, para depois trazer Tom para esse lugar. Isso é reforçado pelos depoimentos, mas já tínhamos visto isso a partir dos artistas em debates dentro do estúdio. Algo que talvez dê para salvar dos depoimentos extremamente burocráticos, é o complemento de algumas tensões que aconteciam nos bastidores. Ambos sujeitos de fortes personalidades – não faço ideia do que isso significa – tentando encontrar um acordo para a execução de um álbum icônico.
Uma dúvida que não sai da cabeça é se as imagens de arquivos eram poucas e tiveram que incluir os depoimentos, ou se não souberam como utilizar o poder que tinham em mãos. Em pesquisa rápida, ao que tudo indica, são mais de 20 horas de áudio reunidas, e algumas outras horas de vídeo. Já que utilizaram a inteligência artificial para dar mais claridade ao áudio, fica a dúvida do porquê não exploraram melhor o vídeo que parece desperdiçado. Por várias vezes, parece que as imagens complementam os depoimentos e não ao contrário. Inclusive é importante dizer que a restauração das imagens é magnífica, quase perfeita.
As vezes a sensação era de que a montagem queria economizar as imagens restauradas, distribuindo-as a conta cotas ao longo dos 100 minutos de duração. A todo tempo éramos interrompidos para dar espaço ao letreiro de datas ou para depoimentos as vezes sem muita importância. Entendo também que para as pessoas que participaram desse grande encontro seria injusto se não aparecessem no documentário, mas fica a sensação de que poderia ter outra maneira de tratar esses depoimentos. Isso reforça a ideia, as vezes confusa por parte da produção, sobre o que e como mostrar em relação aos depoimentos. A montagem e o roteiro parecem confusos sobre o que selecionar, logo, o documentário oscila entre muito interessante e completamente tedioso – ainda que a história seja muito curiosa e não tenha nada de tediosa.
Nos últimos anos tivemos bons documentários musicais de artistas incríveis. Particularmente, acho injusto fazer uma comparação com ‘Get Back’ dos Beatles, ou até ‘Moonage Daydream’ do David Bowie, documentários recentes com grande prestígio e alta qualidade. Primeiro que Elis e Tom segue um ritmo mais televiso e protocolar, e isso em si, não é um problema. O problema parece se concentrar na falta de confiança dos realizadores sobre se, a relação angustiante e de pouco convivência com Elis e Tom naqueles momentos íntimos que compartilharam dentro e fora do estúdio seriam suficientemente interessantes. Algumas vezes, as imagens funcionavam como mero espetáculo técnico pela restauração e não pelo conteúdo, e quando cortava para um depoimento a sensação amarga de quero mais ecoava.
Existiam outras possibilidades para tratar de dois grandes gênios da música brasileira, mas a escolha não poderia ser mais mediana, protocolar e sem sal do que foi. Não dá para dizer que é ruim justamente pelos seus personagens num momento tão importante, íntimo e rico de detalhes, sentidos e gestos. Tudo poderia ser um pouco melhor caso escolhas mais corajosas fossem feitas e não colocassem em segundo plano o espetáculo criativo do encontro de duas mentes brilhantes. Apesar dos deslizes, é gratificante contar com esse espetáculo visual e sonoro inédito, poder escutar as faixas do álbum no som do cinema e ver na tela grande a construção da obra musical e dos embates sobre estilo, musicalidade e vida artística. ‘Elis e Tom: Só Tinha de Ser com Você’ é potencial desperdiçado que ganha beleza e fascínio visto no cinema mesmo que com um olhar mais atento pareça um documentário para a TV.