“31 de março diferente”: entrevista sobre o doc Memória Sufocada
Chegou aos cinemas o filme documentário “Memória Sufocada“. Dirigido por Gabriel di Giacomo, o longa foi produzido durante a pandemia e teve suas primeiras exibições na Mostra de São Paulo. Trata-se de um desses documentários essenciais para promover a oferta de um recorte importante para revisitar o passado do Brasil e compreender melhor as verdades relacionadas à ditadura, especialmente em tempos de negacionismo histórico.
O filme utiliza-se essencialmente de imagens disponíveis na internet, mas também traz imagens inéditas de dentro do prédio do DOI-CODI, local onde foram realizadas as torturas na cidade do Rio de Janeiro.
No dia 30 de março de 2023, véspera da data que marca a memória do Golpe de 1964, o filme chegou às seguintes cidades do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Aracaju, Balneário Camboriú, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza, João Pessoa, Maceió, Manaus, Niterói, Palmas, Porto Alegre, Recife, Ribeirão Preto, Salvador e São Luís.
Para compreender melhor a respeito do filme, o Cinem(ação) fez algumas perguntas ao diretor. Confira a entrevista:
1- Como surgiu a ideia de fazer o documentário? A ideia de começar a partir do torturador Ustra já fazia parte do projeto desde o começo?
O desejo de fazer um filme que mostrasse quem é o Coronel Ustra, o autor do livro de cabeceira do ex-presidente, e relembrar como foi a ditadura no Brasil surgiu em 2018. Durante uma entrevista para o programa Roda Viva da TV Cultura, o então candidato, Jair Bolsonaro citou a obra de Ustra como sendo seu livro de cabeceira.
Na época, também notei uma crescente relativização dos danos causados pelo golpe militar de 1964. Então, senti uma urgência de trazer argumentos que ratificam o óbvio: não podemos esquecer as lições do passado para não errar novamente no futuro.
Como filho de pais historiadores e que viveram o período de redemocratização do Brasil, sempre conversamos muito sobre os anos de chumbo em casa. Apesar de existir uma memória hegemônica, crítica ao regime, o país nunca acertou suas contas com o passado. Essa lembrança não se traduziu em políticas efetivas de criminalização aos violadores dos direitos humanos. Por isso, hoje temos reflexos dessa ‘amnésia’ no cenário político e na segurança pública do país.
2- Quase todo o conteúdo do filme Memória Sufocada está disponível online, mas existe uma diferença entre ver um conteúdo “solto” e fazer as conexões que o filme promove. Foi essa a proposta do documentário?
Todo material do Memória Sufocada estava disponível na internet, mas eu nunca tinha assistido à maioria dos vídeos, que contam com poucas visualizações. O conteúdo na rede é infinito, por isso esse trabalho de curadoria é tão importante. Acredito que nos documentários, o roteiro final sempre é encontrado na ilha de edição. No Memória Sufocada este processo foi ainda mais intenso, sampleando o que ia surgindo na tela do computador.
3- Como foi o processo de organização do doc? O que foi mais desafiador de fazer, e como foi traçado o caminho da narrativa e o “vai-e-vem” entre passado e presente?
Devido à pandemia e à falta de recursos, foi a única forma de viabilizar o projeto. A montagem e a pesquisa foram acontecendo simultaneamente. Eu ia sentindo as necessidades de encontrar as cenas certas conforme a edição ia revelando os “buracos” no filme. E a cada dia fatos novos iam se apresentando nos noticiários e eu sentia a necessidade de incluí-los no filme, e essas conexões do passado com presente iam surgindo quase que naturalmente.
4- Todo documentário é um recorte, e muitos se propõem a provocar o espectador, como é o caso de Memória Sufocada. Qual foi a principal “intenção” que guiou o projeto? Ou seja: o que você mais deseja que o público absorva?
O filme é um convite para que o espectador faça a sua própria busca, por isso todo material utilizado na pesquisa está disponível no site do Memória Sufocada (www.memoriasufocada.com.br).
São tantas informações sobre esse período da nossa história que não cabem em um filme, então a ideia é que os espectadores acessem o material que serviu de base para construção do roteiro, para que cada um possa fazer a sua pesquisa e montar seu próprio filme, mesmo que seja dentro de sua mente.
E eu, não tenho dúvidas de que qualquer brasileiro que fizer uma pesquisa baseada em fontes confiáveis vai entender como a ditadura foi nociva para o nosso país.
5- Já que estamos falando de conteúdo disponível na internet, não tem como não falar das bolhas das redes sociais. De que forma o filme ajuda a “furar” a bolha? De que forma ele pode atingir um público mais amplo?
Com o passar dos anos, a linguagem dos vídeos antigos vai se tornando cada vez menos atrativa para as gerações mais novas. Então, fiz um trabalho de tentar traduzir esse rico material para um universo digital, buscando uma montagem mais dinâmica, que pudesse prender a atenção dessa audiência.
6- O Brasil é um país que tende a estudar pouco de sua própria história e ainda realizou uma anistia geral aos militares após a Ditadura. Como você vê a importância da Comissão da Verdade? O que o Brasil ainda precisa fazer para curar essas feridas (ainda abertas na sociedade) da tortura?
A Comissão da Verdade fez um trabalho fundamental para a preservação da memória desse período com o levantamento de documentos e a coleta de depoimentos. Tudo disponível para quem quiser se informar sobre esses fatos históricos.
Infelizmente, faltou a condenação dos violadores dos direitos humanos. Eu acredito que essa é uma das razões pela qual a memória desse período segue em disputa e um deputado possa se sentir confortável em homenagear um torturador no Congresso.
7- O filme é lançado já em outro contexto, com um novo governo no país. Como você enxerga a maneira com que o atual governo está lidando com os militares? O que você espera que esse novo momento político pode trazer ao país na sua relação com a ditadura e a tortura?
Acredito que numa democracia saudável, os militares não devem se envolver com política. Não faz parte do seu papel constitucional. Como no governo anterior esse limite se tornou obscuro, é preciso reestabelecê-lo.
Hoje já foi um 31 de março diferente: não houve comemorações oficiais do golpe de 64 e tivemos a volta da Comissão de Anistia, que vai rever os pedidos de anistia de vítimas da ditadura militar que foram negados pelo governo Bolsonaro.
As políticas de reparação são importantes com o Estado reconhecendo os crimes que cometeu. Além disso, é preciso seguir criando os espaços de memória nos locais onde eram realizadas as torturas, e o mais importante: investir na formação. Afinal, mentes pensantes não pedem a volta da ditadura.
8- Memória Sufocada está sendo lançado, mas já teve exibições em festivais. Como tem sido a recepção ao filme?
A recepção do filme tem sido muito boa. Nas sessões tivemos a presença de ex-presos políticos que viveram durante a ditadura e jovens estudantes que não têm uma memória do período. Fiquei contente pois todos saíram impactados e com vontade de dialogar sobre o tema.
9- Tem algo importante a acrescentar?
Nós somos a primeira equipe de cinema a filmar dentro do DOI-CODI. Conseguimos viabilizar essa filmagem por meio do Núcleo Memória, uma entidade que organiza visitas guiadas ao local e tem um trabalho muito importante para a preservação da memória nacional. Filmamos o DOI-CODI como está hoje: um lugar vazio e abandonado, mas repleto de lembranças que reverberam até os dias atuais.
Foi fundamental mostrar que existiam espaços onde dar choques elétricos, pendurar pessoas no pau-de-arara, espancar, matar e desovar corpos era autorizado pelo Estado.