Crítica: Os Fabelmans
Ficha técnica – Os Fabelmans
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Steven Spielberg, Tony Kushner
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 9 de fevereiro de 2023 (no Brasil)
Sinopse: O jovem Sammy Fabelman se apaixona por filmes depois que seus pais o levam para ver “The Greatest Show on Earth”. Armado com uma câmera, Sammy começa a fazer seus próprios filmes em casa, para o deleite de sua mãe solidária.
Elenco: Michelle Williams, Gabriel LaBelle, Paul Dano, Judd Hirsch, Seth Rogen.
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Em uma breve pesquisa no Google, encontrei que o número de mortos na pandemia da Covid-19 no mundo ultrapassou a marca assustadora e dolorosa de mais de seis milhões de pessoas. No auge da doença, em 2020, uma enorme quantidade de famílias sofria as consequências do vírus na própria pele e outras várias morriam no Brasil e no mundo, todos os dias. Os nossos corações, assim como as nossas casas, se encheram de tristeza, desesperança e nostalgia do que um dia fora o mundo e a nossa própria vida fora de casa, e de vez em quando nos perguntávamos se um dia tudo voltaria ao normal. No meio disso, muitas pessoas passaram a fazer falta, enquanto a presença das que ficavam era cada vez mais valorizada.
Uma doença como essa fez milhares de nós refletirmos sobre como levávamos nossas vidas. Alguns de nós se deram conta de que nunca gostaram do trabalho que tinham e, no retorno à normalidade, mudaram completamente de carreira. Outros decidiram realizar os seus sonhos mais antigos e finalmente foram viajar por aí, conhecendo os lugares que sempre adiaram. Houveram pessoas que mudaram de vida, que decidiram ter novos hábitos, que perceberam que a vida passava muito mais rápido do que a gente pensava e, talvez por isso, fosse bom finalmente vivê-la. Fazer o que realmente queremos, enquanto ainda existimos e ainda podemos viver e ter histórias para contar.
Para Spielberg, a pandemia não foi nenhum pouco diferente do que foi pro resto do mundo. O diretor de Tubarão (1975), ET – O Extraterrestre (1982), A Lista de Schindler (1993), Jurassic Park (1993) e tantos outros filmes sucesso de bilheteria, se viu tão frágil, reflexivo e introspectivo quanto o resto de nós. A quarentena, junto à possibilidade de não estar vivo para contar sua própria história no ambiente que tanto ama, lhe foi uma revelação catártica e decisiva. E, de repente, contar histórias fantásticas sobre os outros não parecia mais o suficiente para sua filmografia, era chegada a hora de abrir para o público um lado diferente de si. Um lado profundamente pessoal.
O diretor confirma o que eu disse acima em uma entrevista feita por Martin Scorsese, mas é no início de “Os Fabelmans”, na grande tela, que um vídeo aparece para nos trazer a certeza. Antes do filme, é possível assistir a Spielberg dizendo algo parecido com: “estou feliz que veio ver meu novo filme nos cinemas, essa é a história mais pessoal que já fiz”. Quando o vídeo termina, a música da Universal Pictures se inicia, e o que estamos prestes a testemunhar não tem como prever e nem se preparar. Não temos ideia, mas nas próximas horas iremos nos deparar com algo tão especial e intimista que não restará dúvidas de que estamos vendo uma parte da história sendo feita.
Logo na cena de abertura, a câmera que se posiciona no nível do protagonista Sammy nos coloca na posição de uma criança e nos remete à inocência dessa fase, retratando um misto de empolgação, medo e curiosidade. Ele está prestes a entrar pela primeira vez em uma sala de Cinema e o pai, racional e gênio como é retratado, explica para ele cientificamente como funciona o cinematógrafo: “são 24 imagens por segundo”, “nossa mente é mais lenta que a imagem”, “funciona assim”. Já a mãe artista, em contrapartida, demonstra se interessar mais pela emoção que Sammy irá retirar dessa experiência: “você vai gostar”, diz ela. Razão e emoção, o embate que vai guiar o personagem em toda sua jornada de amadurecimento enquanto se apaixona, cada vez mais, pelo ato de fazer e viver o Cinema.
Não é nem preciso dizer que, no final, é a emoção que prevalece. Sam é um emocionado e gosta tanto da experiência de ver filmes tanto quanto se encanta pela arte através de, claro, um filme de assalto à trem. Sim, os mesmos trens que um dia chegaram à Estação, no popularmente conhecido como “primeiro filme do mundo”, feito pelos Irmãos Lumiére ou “pais do Cinema”. O filme que os Fabelmans assistem não é esse, no entanto a referência está ali. Tanto à história da sétima arte, quanto à história desta nos Estados Unidos, que é marcada por este subgênero do Western desde o princípio. Os filmes de trem são, notoriamente, típicos americanos e marcaram o cinema do país por anos, dando boa parte da propulsão necessária para que a sétima arte se tornasse um dos carro-chefes dos EUA, anos depois (carro-chefe este que passou a ser dominado pelo próprio Spielberg, a partir dos anos 70, como o inegável rei do blockbuster, diga-se de passagem).
O fascínio do protagonista é tamanho que a primeira ideia que tem quando chega em casa é pedir trens de brinquedo para o pai, para poder reproduzir o que tinha visto na grande tela. Com a ajuda da mãe, Sammy filma a colisão dos vagões e então reassiste a cena em uma sala escura, só ele e o projetor, incontáveis vezes. A delicadeza com a qual Spielberg narra esse primeiro “conto” do filme é digna de se emocionar e me remete à pureza dessa infância que ele já sabia demonstrar captar tantas outras vezes (como no clássico ET, por exemplo). A gente se diverte com os pequenos curtas feitos por Sammy com uma câmera de 8mm, por meio de close-ups das suas doces travessuras infantis, que moram nos detalhes: dos papéis higiênicos completamente acabados até o dente de catchup. É tudo muito ingênuo, empolgante e hilário.
Parece que Spielberg de fato entende a cabeça de uma criança (especialmente a dele à época), e nos põe no lugar dela, no mesmo nível, não apenas pelo enquadramento de um frame mas por toda criatividade que possui no ato de criação dessa sequência narrativa. Por um breve e apaixonante momento, aquele é nosso lugar, o de inocência. Mas, à medida em que Sam cresce, contudo, os contos deixam de ser leves, e a vida passa a ficar cada vez mais complexa. A chegada da adolescência traz para ele novos dilemas: um novo amor, um colégio cheio de babacas antissemitas e o relacionamento difícil dos pais, que está desmoronando. É nesse momento que o ato de fazer filmes aparece como algo muito mais sério para Sammy, assim como um refúgio de paz.
Mesmo com toda a vida desmoronando ao seu redor, irá enxergar no ato de fazer filmes e exibi-los para os amigos e familiares, um propósito, um sentido. O Cinema então se transforma em uma forma de alegrar a mãe que vive um luto, de torná-lo popular na escola e, também, de mostrar a verdade que vivia escondida debaixo do tapete, sobre a mãe e o melhor amigo, para toda a família – mesmo que essa não fosse a sua intenção inicial. Ironicamente, a vida do diretor sempre foi movida pela sua proximidade com a sétima arte e as suas relações com o mundo e as pessoas sempre estiveram condicionadas à forma que tinha de criativamente contar histórias.
O que torna Steven Spielberg um dos maiores diretores da história do Cinema mora em cada detalhe de Os Fabelmans. O maior traço de genialidade do diretor mora na sua capacidade de entender o outro, de decifrar o público. Ninguém conhece mais a própria audiência que um diretor que tem a sua filmografia, talvez apenas Hitchcock tivesse um conhecimento tão aprofundado quanto ele na hora de manipular as emoções de uma plateia inteira. Durante toda a sua vida, Spielberg parece ter caminhado para esse momento, em que pudesse contar a sua própria história e de sua família, com a dose correta de emoção e expertise.
Muitos outros autores tentaram fazer o mesmo, é claro, e eu posso dizer ao menos meia dúzia, incluindo o próprio Scorsese com A Invenção de Hugo Cabret (2011). Mas, para mim, até agora, apenas Steven Spielberg conseguiu transformar uma biografia tão íntima, que homenageia o Cinema de forma tão cristalina, em um filme familiar e universal. Talvez o enfoque na narrativa de amadurecimento, além da maestria da direção em saber de que forma e quando inserir as imagens em tela, seja o que permite que Os Fabelmans converse com todos os públicos e oscile entre o drama e a comédia facilmente, natural como é o ato de crescer. Ou talvez seja tudo isso junto e misturado.
Só sei que esse é o tipo de trabalho que, mesmo em 2023, na era dos streamings, tem a capacidade de atrair pessoas de volta para os Cinemas a fim de sentir na pele a magia que só esse ambiente pode criar. A metalinguagem que a presença dessas salas de cinema possui dentro da lógica interna do filme também proporciona esse sentimento. É metalinguístico que, durante um filme feito por Spielberg, fiquemos ansiosos também para ver os pequenos curtas criados pelo personagem que interpreta ele mesmo. Os “filmes dentro do filme” são parte dos momentos em que ficamos mais empolgados, inspirados e maravilhados sobre “Os Fabelmans”. Sabemos que são o resultado de todo um processo criativo, de filmagem, montagem e edição, totalmente artesanais, feitos pelo protagonista. Tudo igual como era feito no começo da história da sétima arte: fruto de um trabalho minucioso, divertido e mágico, vindo diretamente de uma mente criativa, de um personagem adorável.
São trabalhos como esse que emocionam e nos fazem parar para refletir qual a importância do Cinema e como ele afeta as pessoas de maneiras diferentes, mas ao mesmo tempo tão parecidas. A complexidade da personagem de Michelle Williams, por exemplo, talvez a mais complexa da carreira do diretor, pode ter sido julgada como egoísta para muitos e puramente honesta para outros, mas ao final torna-se impossível não se emocionar com muitas das suas cenas. Até a presença do personagem Tio Boris, que revela “amamos a nossa família, mas a arte é a nossa droga”, é inegavelmente cômica ao passo que é reflexiva, para todos. Temos as nossas próprias impressões sobre os personagens que nos são apresentados, mas ao fim todo mundo compartilha das mesmas reações – e é isso que um bom diretor faz.
Pois o Cinema também é sobre um sentimento uníssono, uma humanidade avassaladora que se revela quando estamos todos juntos, em uma sala escura, cheia de desconhecidos e assistindo uma história que sabemos muito pouco ou quase nada sobre. O Cinema é mais sobre estarmos dispostos a comprar essa narrativa, a embarcar nessa viagem, a fazer um acordo com a obra de arte de que agora somos apenas nós e ela, como Sammy e seu projetor, no escuro do seu quarto, assistindo trens colidirem, de novo e novo.
Encerrar o filme, após o diálogo entre Spielberg e John Ford, diretor de muitos dos Western mais famosos que o mundo e os EUA já tiveram, é fechar um arco sobre a história do Cinema, o qual dá a volta completa ao iniciar-se na cena de abertura, no encanto imediato pelos trens, e se encerra nos corredores do estúdio em que agora trabalha, perseguindo o seu sonho. A correção final, cômica e sutil, é uma espécie de cereja do bolo ao focar no vasto céu azul no horizonte, dando a sensação de que se inicia uma longa jornada onde tudo é possível, onde retomar as rédeas da própria vida e caminhar em direção a um futuro é o que precisamos fazer a partir de agora, quando as luzes da sala acendem e a vida recomeçar.
O diretor que tem uma filmografia como a que possui poderia descansar para sempre, mas Spielberg decidiu dividir uma parte de si conosco, e eu sou muito grata por isso. É como se, depois de anos de pandemia, sem perspectiva de sair do longo pesadelo, os anos seguintes se iniciam como uma folha em branco, pronta para ser rabiscada, um novo capítulo que inaugura para que possamos tentar algo novo. Chega de contar histórias sobre os outros, esse o momento de contar a minha.
O rei do blockbuster, que sempre nos levou ao Cinema para ver histórias fantásticas, conhecer seres de outro mundo, a ter pesadelos com tubarões, dinossauros e os terrores da guerra, hoje nos leva para conhecer uma parte de si mesmo, contada de maneira tão incrível que parece mesmo extraterrestre. Para mim, é isso que a gente precisa e é isso que a gente espera quando saímos de casa. O Cinema é inútil sim, como todas as artes, mas o que pode fazer por nós, pessoalmente, apenas por existir e provocar reflexão a partir disso, é de mudar perspectivas, algo, de fato, para além do filme. Os Fabelmans é extrafílmico, extracorpóreo, extraordinário, e acima de tudo, um marco cinematográfico. Absolutamente inesquecível.