Crítica: Aftersun
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Crítica: Aftersun

Aftersun – Ficha técnica:
Direção: Charlotte Wells
Roteiro: Charlotte Wells
Nacionalidade e Lançamento: Reino Unido, Estados Unidos, 2022 (6 de janeiro de 2023 no streaming).
Sinopse: Sophie reflete sobre a alegria compartilhada e a melancolia particular de um feriado que passou com seu pai vinte anos atrás. Memórias reais e imaginárias preenchem lacunas entre as filmagens em miniDV enquanto ela tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que não conhecia.
Elenco: Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall.

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Foi Tolstói quem disse: “todas famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, e eu concordo com isso. Na mesma casa em que a felicidade e todos os melhores sentimentos de afeto, acolhimento e pertencimento moram, a tristeza e a angústia geralmente vêm acompanhadas. Em Aftersun, filme de estreia da diretora Charlotte Wells, ela traduz esse sentimento díspar e confuso através de um quebra-cabeça das memórias que tem com o pai, escolhendo especificamente as férias que passou com ele quando tinha apenas 11 anos de idade.

No filme, Paul Mescal e Frankie Corio, em perfeita sintonia, são pai e filha passando as férias em um hotel à beira-mar na Turquia. A forte luz quente do verão, o mar azul e convidativo, as descobertas da adolescência para Sophie, o comportamento ora introspectivo e recluso, ora alegre e sorridente de Calum, as conversas íntimas e profundas entre os dois… tudo é extremamente imersivo. Com uma decupagem naturalista, típica dos filmes independentes da última década, a diretora consegue capturar a nossa atenção e nos convida a sair de férias com esses dois personagens absolutamente encantadores apenas pela forma como olha para essa relação tão singular (e ao mesmo tempo tão universal).

Um pouco como em L’Abordage (2021) ou um filme de verão de Éric Rohmer, Aftersun se inicia com esse doce toque de inocência, onde tudo parece correr na mais perfeita paz e harmonia. O afeto que mora no simples ato de limpar o rosto um do outro, o cuidado paterno com a filha, os momentos em que se divertem, é um sentimento tão bom que parece palpável. No entanto, não demora muito para que uma uma série de acontecimentos e significados, que moram nas entrelinhas, seja no olhar, seja na linguagem corporal, passem a desestabilizar esse status quo do tempo presente e instalar em nós, através de flashforward (ou seriam sonhos?), o mais profundo e angustiante sentimento da dúvida.

Do segundo ato em diante, o longa nos surpreende com o fato de estarmos vivenciando memórias de um momento que, na verdade, já passou. A partir de então, são muitos os questionamentos que passam a surgir: o que aconteceu com Calum? Que fim levou sua relação com Sophie? Quem é o bebê que chora desesperadamente e porque o pai de Sophie não está presente? Alguém morreu? Alguém cometeu suicídio? Não sabemos. O que realmente sabemos é que não queremos, jamais, sair daquele verão, pois todo sentimento pavoroso que vem por meio de flashes para nós é como se fosse um thriller, um filme de terror, contrastando com a doce e gentil brisa do mar.

Romper com a tranquilidade do afeto que vem da mais genuína forma de amor paternal, no entanto, é a exata intenção de Charlotte Wells. Ela também não queria ter saído daquele verão, nem ter se despedido do pai. É quando entendemos, no nosso âmago, que Aftersun é exatamente sobre isso: a urgência de remontar, e então poder reviver, a melhor memória que você tem com quem ama. O que a diretora constrói é fruto da clara oportunidade que o cinema dá de poder montar todas as memórias daquele verão (literalmente, por meio da montagem quase impressionista), para poder acessar esse momento quando quiser – sem se esquecer que não é assim que as coisas continuam sendo, infelizmente.

Aftersun, Belfast (2021), Roma (2018), e até mesmo, nesse ano, The Fabelmans e BARDO, são todos filmes que, de uma forma ou de outra, tentam fazer o mesmo com a vida de seus autores. Até Federico Fellini fez algo parecido ao tentar explicar sua crise existencial e criativa no clássico 8 ½ (1963). No entanto, se nesses outros os diretores dramatizam e espetacularizam suas próprias vidas e vivências, em Aftersun a diretora irá tomar um rumo diferente ao optar pelo minimalismo, tanto das imagens quanto dos diálogos, para se expor, quase que completamente, do seu saudosismo nostálgico até seu mais desesperador pesadelo. 

O minimalismo, na verdade, é mesmo uma das mais fortes e cruciais características deste filme. É isso que nos faz passar o tempo inteiro tentando obter respostas para as mais incessantes perguntas. Esperar que haja um conflito, uma discussão, um clímax, qualquer razão que possa explicar para nós o porquê do provável rompimento. Aguardar sentados que esse momento seja, se possível, o mais barulhento que puder e que tudo de silencioso que insistentemente recebemos em tela apenas se rompa. Contudo, o mais interessante de Aftersun está em tomar o caminho oposto do esperado e não se exaltar em nada para além da linda cena da dança entre Sophie e Calum, onde a música diz mais do que qualquer outra coisa.

Ao final, a diretora opta, conscientemente, por não conceder respostas e apenas se apoiar na impagável sabedoria que sabe que possui o silêncio. Assim, Wells demonstra ter feito a lição de casa para seu primeiro longa, ao confiar totalmente na força das imagens para transmitir o peso dramático que sabe que a sua história, tão pessoal e dolorosa, certamente possui. Não à toa, faz deste um dos melhores filmes dessa temporada e já alça voos bastante altos com nada menos do que um relato profundo, pelo seu viés, sobre um terço de sua própria vida.

  • Nota
4.5

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