Crepúsculo é cult?
O ano era 2008 quando eu tive meu primeiro contato com Crepúsculo. A história escrita por Stephanie Meyer sobre uma jovem adolescente humana e um vampiro – um tanto diferentão – que se apaixonavam perdidamente rapidamente um pelo outro logo se tornou uma febre adolescente e eu, com meus 11 anos e sendo uma consumidora assídua das revistas Capricho, não tinha como ficar fora dessa. Em todos os lugares, Bella Swan e Edward Cullen estampavam produtos diversos, capas de revistas e redes sociais.
Bella Swan era uma personagem identificável e todas as pré-adolescentes daquela época tinham alguma característica em si que também podiam perceber na protagonista. Além disso, a saga Crepúsculo (assim como Harry Potter), representou não apenas um dos meus primeiros contatos com o mundo da literatura, como foi uma das principais razões pelas quais eu me apaixonei pelo mundo da escrita e, já aos 11 anos, me arrisquei a escrever sobre o que quer que passasse pela minha cabeça e publicar no meu blogspot, pra qualquer um ver.
Hoje, em 2022, muita coisa mudou em mim. Meu amor pela literatura ainda existe, mas parte dele transmutou para um amor ainda maior pelo Cinema. A arte como um todo sempre me atraiu, mas de 10 anos pra cá foi a cinematográfica que tem moldado minha forma de ver mundo. Meus textos, antes estritamente pessoais e psicológicos, passaram a se tornar críticas cinematográficas pautadas em uma tênue linha entre a razão e a emoção, entre a objetividade, das teorias e história do Cinema, e o subjetivo, da minha própria experiência e forma de ver o mundo.
Com isso, muitos dos filmes que fizeram parte da minha infância e adolescência ganharam novos significados. Sobre a maioria deles, restava apenas o bom sentimento nostálgico, de uma memória doce e acolhedora que eu não ousava rever para não “estragar”. Crepúsculo costumava ser um desses filmes, até esse ano. Mais de 10 anos depois de assisti-lo pela primeira vez, me peguei apresentando Crepúsculo para o meu irmão mais novo em fevereiro, revendo com meus amigos em agosto e, semana passada, em pleno dezembro, indo reassisti-lo, dessa vez, na grande tela do Cinema.
Cada experiência de revisita me despertou um sentimento diferente. De primeira, ficou claro para mim que Crepúsculo realmente não era um bom filme, tecnicamente falando. Faltava uma boa direção, boa fotografia, bons protagonistas, bom texto e efeitos especiais. Indubitavelmente, eu estava diante de um filme que não poderia ser descrito por nada menos do que “tosco”. Tudo sobre os Cullen, sobre os trejeitos de Bella, a forma bizarra como Edward se comportava, a falta de saturação das imagens, o conflito principal e os vilões e seus guarda-roupas excêntricos era tão ruim que chegava a ser cômico.
Já na segunda revisita, tudo que parecia exagerado, fora do tom e extremamente antinatural, passou a ser motivo de risada. O filme se transformou em uma comédia para mim e suas cenas mais importantes e memoráveis, como a cena da floresta em que Bella descobre a natureza de Edward Cullen, se tornaram engraçadas. O estilo também passou a ser um verdadeiro triunfo de Crepúsculo para mim, lá pela terceira vez que revi. Todo o exagero do guarda-roupa, que era o DNA da moda de 2008, não era apenas nostálgico como conversava muito bem com aquele universo incomum de Forks, onde vampiros que brilham no sol existem e lendas sobre meninos que viram lobos fazem parte da cultura local.
Tornou-se um fato para mim que todos os aspectos que um dia me incomodaram sobre Crepúsculo voltaram ressignificados, e que isso aconteceu quando passei a perceber que o filme não poderia ser levado tão a sério, especialmente mais de 10 anos depois de seu lançamento. Também percebi que, apesar de muitos aspectos daquele universo excêntrico serem essencialmente toscos e o filme, sem sombra de dúvidas, falhar em vários aspectos técnicos, ainda devia existir uma razão para que uma legião assídua de fãs ao redor do mundo gostasse de assisti-lo e enxergasse em seus aparentes defeitos, qualidades dignas de formar ao seu redor um verdadeiro culto.
E foi então que pensei comigo mesma: teria Crepúsculo, mais de dez anos depois do seu lançamento, se tornado um filme cult? À primeira vista parecia um pensamento ridículo para mim colocar esse filme ao lado de The Rocky Horror Show (1975), Pink Flamingos (1972), Showgirls (1995), The Room (2003) e muitos outros. Mas, quanto mais pesquisava sobre as definições de filmes “cult”, mais fazia sentido atribuir o termo ao longa dirigido por Catherine Hardwicke, já que a primeira e mais essencial característica, presente na epistemologia da palavra, este já possuía: tinha um fiel e inegável culto ao seu redor.
Não importa quanto tempo passa, Crepúsculo parece angariar ainda mais fãs, e seus “signos”, continuam sendo reconhecidos mesmo por quem nunca assistiu ao filme. A imagem de Bella Swan e Edward Cullen, o forte filtro azul e as músicas de sua trilha sonora criaram raízes tão fortes dentro da cultura pop que se tornaram impossíveis de serem esquecidas. “Bella’s Lullaby”, “Decode” e “Supermassive Blackhole” são músicas imediatamente associadas ao filme e que, vez ou outra, voltam a fazer sucesso e são trend em aplicativos usados por um público majoritariamente jovem, como o Tik Tok.
Além disso, Crepúsculo também é particularmente excêntrico, com estética e estilo que lhe são muito próprias, outra característica comum a filmes cult. Quem não reconhece os personagens de The Rocky Horror Show, mesmo que nunca tenha assistido ao filme? Ou a maquiagem excêntrica da personagem de Divine em Pink Flamingos? Ou, até, a cena icônica de Johnny com um martelo em O Iluminado? Todos nós sabemos, mesmo sem ter visto nenhum desses filmes. Hoje, o estilo de Bella Swan, da família Cullen e de Victoria, por exemplo, estão frequentemente ressurgindo em festas à fantasia pelo mundo, mostrando que nunca foram esquecidos desde seu lançamento.
As duras críticas ao filme na época do seu lançamento também preenche mais uma característica comum do “cult”: a má recepção do público especializado. Crepúsculo foi um dos filmes mais rechaçados pelos críticos no seu lançamento em 2008 e, naquele mesmo ano, foi vencedor do Framboesa de Ouro de pior filme. O mesmo aconteceu com um clássico cult hoje aclamado pela crítica de Paul Verhoeven, Showgirls, que foi premiado com Pior Atriz, Pior Filme, Pior Direção, Pior Roteiro e alguns outros. Também aconteceu com o filme O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, que hoje é considerado um dos melhores filmes da história do Cinema.
Isso acontece porque, geralmente, os filmes “cult” fogem do convencional pois se aventuram em um universo surreal, que tende a fugir de um certo “padrão”. São filmes que, muito embora possam partir de uma premissa bastante comum e realista (como no caso do filme em questão, essencialmente um romance), o fazem em um universo não raro fantasioso que detém de um estilo bastante específico, o que volta para a característica da excentricidade. É disruptivo porque se trata de algo nunca visto antes, pelo menos não sob o prisma que está sendo retratado naquela obra em específico. E, embora, Crepúsculo não seja um filme exatamente transgressor e marginal, como muitas definições atribuem aos filmes cult, este é, com certeza, um filme disruptivo na forma como aborda o universo fantástico e o “vampiresco”, diametralmente oposto ao que fora um dia um Nosferatu (1922) ou um Drácula de Bram Stoker (1992).
Por último, mas não menos importante, acredito que Crepúsculo seja um filme cult por ser controverso. Por exemplo, ao publicar esse artigo eu sei que muitos irão discordar da minha opinião pois ainda veem o longa baseado no livro de Stephanie Meyer como um filme inferior, ruim e sem sentido. Mas, na contramão disso, também sei que muitos outros irão concordar com essa abordagem e/ou passar a percebê-lo como um filme de comédia cult, o qual no futuro poderá ser revisto com novos olhares, sob uma nova perspectiva.
Um filme cult não gera controvérsia apenas à época do seu lançamento. Filmes cult são filmes que, embora muito amados e cultuados, continuam a gerar discussão anos depois do seu lançamento por uma gama massiva de defensores x haters. Por exemplo, irá existir quem insista até o fim que todo o lado “camp” de Crepúsculo lhe deixa incrivelmente tosco e intragável e tem quem, como eu, anos depois, irá ver nisso um mérito inigualável do filme. São diferentes visões que geram uma controvérsia eterna, saudável e muito, muito rica.
Não estou dizendo que em breve Crepúsculo deva ser considerado um novo O Iluminado, e nem que Catherine Hardwicke venha a ser considerada uma nova espécie de Stanley Kubrick. Assim como The Room nunca se tornou um consenso entre a crítica, e seu diretor Tommy Wiseau nunca foi considerado um excelente cineasta. Mas estou dizendo, sim, que é plenamente possível que possamos ressignificar o filme o suficiente para conseguir dar a importância que ele tem enquanto um marco sem precedentes da cultura pop dos anos 2000, e reconhecê-lo como uma comédia cult, cujo estilo excêntrico e inumeráveis falhas técnicas sejam, na verdade, o que tem de tão único e especial.