Crítica: Deslizamentos Progressivos do Prazer (1974)
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Crítica: Deslizamentos Progressivos do Prazer (1974)

Alain Robbe-Grillet foi um escritor cultuado de sua época, principalmente por fazer parte de um movimento chamado “nouveau roman” – novo romance – que tinha como proposta básica a reinterpretação do romance como algo linear. Como algo típico dos anos sessenta, a sua posição artística assumiu grande relevância em um momento onde a carência de ideias inovadoras era muito grande. Além de escritor, Grillet também realizou muitos trabalhos audiovisuais, seja como roteirista ou diretor, a maioria dos seus filmes abraçam essa questão da linguagem subliminar, onírica e a não linearidade como elemento fundamental para o andamento da história e evolução das personagens e seus simbolismos.

Uma temática que envolve diversas de suas obras é a feminilidade e as simbologias que nascem e se desenvolvem à partir dela. “Glissements progressifs du plaisir” ou “Deslizamentos Progressivos do Prazer” reúne da melhor forma possível as melhores qualidades do artista, esse é o exemplo perfeito e síntese da sua proposta de narrativa desconectada de um tempo específico mas que, nem por isso, perde a lógica e se torna extremamente confusa, existe uma ordem na desorganização, a interrogação motiva o espectador à desdobrar-se, deslizando em direção da emoção extrema e interesse primitivo pela busca da decodificação de signos.

A mulher é sinônimo de respostas, aquelas que a humanidade busca desde a primeira vez que seus olhos enxergam as cores do mundo. E é assim que o filme começa, uma mulher de olhar penetrante, há quase uma quebra da quarta parede e um som de vidro quebrando surge de maneira abrupta para dar fim ao estranhamento causado anteriormente – sensação que se perdura durante toda a obra, assim como a leve comicidade intencional -; esse vidro despedaçado personifica a ruptura, a violação da ética, de outro modo, seria algo como a porta de entrada para um universo de possibilidades próximas e infinitamente semotos.

Na estrutura principal da história temos uma bela moça que “aprisionada” em um quarto, se vê diante ao cadáver de uma mulher e passa então a ser investigada por símbolos de poder social. Um policial, uma freira e um padre, todos esses têm em comum a tentativa de diálogo com a protagonista, ao passo que sutilmente somos direcionados a acreditar que ela é uma bruxa, que mesmo com a sua verbalização custosa e direta, parece ter a magia de fazer todos à sua volta acreditar nas mais evidentes mentiras; para isso busca apoio constante na sua sexualidade.

“Todos os que se aproximam de você são pervertidos, insanos. Mas está tudo na sua pequena mente”

Há diversas formas de se analisar esse filme, uma das mais coerentes é trocar os personagens por valores simbólicos. A entrevista ou investigação representa o próprio autor que dialoga com seus personagens e seduz o espectador com esse jogo manipulatório, seja da protagonista ou do texto. É de extrema capacidade que Alain Robbe-Grillet fala sobre a mulher aqui, principalmente em relação ao seu desprendimento. Imagine esse conteúdo sendo trabalhado sob uma forte coesão com a direção de arte, onde os objetos de cena, as cores, fazem muito sentido para a completude dos significados, sendo a maioria deles relacionado com a psique feminina.

A protagonista, Alice (seria uma alusão à Alice no País das Maravilhas, comparação destoante em um primeiro momento, mas faz sentido quando lembramos na alucinação, sentimento de vulnerabilidade e desespero silencioso provocado pelo abandono) interpretada com graça pela lindíssima Anicée Alvina sempre é fotografada na parede branca, recusando o seu próprio corpo e querendo se tornar parte de onde está; em relação ao corpo, é curioso que ao mesmo tempo que tenta camuflá-lo, o compreende como uma ferramenta de persuasão.

“Você não é bonita, sua roupa te esconde muito”

O quarto que a abriga é a consciência e confessionário, é onde ela molda sua vítima e a mata antes de transformar seu corpo nu em um manequim. Objetificando uma vida, expressando centenas de anos de abuso e desarmonia. As mãos com tinta vermelha nos seios da freira é a provocação e alerta, sobre os segredos que estão ocultos entre as vestes sagradas. São tantas reflexões, como a nudez que se choca com a parede e colori o branco vivo ou o momento que Alice solta os cabelos da sua advogada, bem típico de alguém que pouco se interessa, senão, na libertação; outra cena é onde ocorre uma masturbação com ovos e um líquido vermelho, é o encontro entre vida e morte, paixão e sangue, todos eles atrelados ao sexo e gozo.

“Deslizamentos Progressivos do Prazer”  (1974) consegue transmitir a mensagem e o faz de forma singular, remetendo a nomes como Luis Buñuel e Alejandro Jodorowsky, se apropriando do surrealismo e unindo a narrativa desconexa com a fotografia pura e clara, direção de arte primorosa – principalmente levando em consideração o espaço físico reduzido -, além de uma grande atuação de Anicée Alvina e uma singela participação da Isabelle Huppert.

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