Crítica: O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017)
O diretor Yorgos Lanthimos representa o que há de melhor no cinema grego contemporâneo, desenvolvido em meio à crise social, tende a ser muito absurdo em sua violência e desconfortabilidade (caso te interesse, gravamos um podcast sobre “Miss Violence” e na introdução falo bastante sobre a “nova onda de filmes gregos”), isso porque além da habilidade incrível como roteirista ele também apresenta um domínio avassalador na direção, seja através na condução dos atores ou outras decisões técnicas, tudo de acordo com a ideia principal do texto mas sem nunca se render ao expositivo ou óbvio, resultando em uma constante sensação de estranheza e iminência de uma catástrofe.
Arquitetura moderna, limpa e grandiosa; na parte inferior do quadro caminha um homem, médico, que canaliza diversos sentimentos em si e age como um orquestrador do tempo, um Deus. A abertura de O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) é um tórax aberto e um coração pulsando, literalmente, em uma mesa de cirurgia, órgão que atrelamos o abrigo dos sentimentos, quase como uma apropriação do corpo e significado de modo a subjugar a verdade para dar contorno poético a coisas que são como são, simples e pragmáticas.
Sabemos que o protagonista Steven (Colin Farrell) é um cardiologista renomado e pelo sucesso profissional se vê próximo a perfeição, tem uma postura unilateral, apesar de intelectualmente desenvolvido, em seu primeiro diálogo deixa de maneira exposta a sua forma banal de tratar o cotidiano ao conversar com o amigo anestesista sobre o relógio deste e logo em seguida comprar um igual para dar de presente. Duas coisas ficam expostas a partir dessa sequência inicial: a primeira é o modo como o longa reflete o tempo e ciclo a todo momento; a segunda é como o cardiologista se sente dignamente capaz de controlar esses dois elementos. É irônico o fato dele ser casado com Anna (Nicole Kidman) que é oftalmologista, visto que ela será desenvolvida como a pré-disposta a doar-se para o bem ou prazer alheio, como uma inversão de valores, o coração continua a tão somente pulsar na sua frequência enquanto os olhos refletem não só a realidade como o amor.
Três ambientes assumem extrema importância em “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017): hospital – onde a arquitetura moderna, grandiosa e clara remete à ideia de paraíso, além de que o diretor opta por deixar os personagens na parte inferior do quadro de modo a inferiorizá-los ou transformar os seus movimentos em algo mecânico, são nas cenas no hospital que geralmente o protagonista é filmado com travellings os quais simbolizam justamente o deslocamento no espaço; a lanchonete onde o protagonista mantém encontros secretos com Martin (Barry Keoghan) e em contraponto com o hospital, a câmera geralmente é fixa, além do local representar a fuga, bem como a busca pelo sagrado, considerando que apesar de não assumir em nenhum momento, o vínculo que se dá entre Steven e Martin é mantido pela culpa de um dos lados; e por fim a casa de Steven, onde sua família é apresentada e, em uma primeira e segunda camada, tudo funciona bem – ele é um pai ausente mas carinhoso e na medida do possível dedicado, sua mulher é atenciosa e os dois filhos têm seus interesses e se dedicam – mas a relevância no contexto familiar é que cada um possui um distanciamento intrínseco do outro, como se essas partes não pertencessem ao mesmo universo.
É somente na apresentação da família que temos a certeza que o filme fala principalmente sobre o tempo e de que forma lidamos com o ciclo, pessoal ou alheio. A começar pela mulher que simula estar anestesiada na cama para dar prazer ao parceiro – manipulação do corpo sem vida? controle? necrofilia? -, passando pela filha Kim (Raffey Cassidy) que acabara de menstruar – algo que é dito pelo próprio pai de maneira estranhíssima em uma festa, mais uma manifestação de controle -, possui grande interesse por música e culminando no filho mais novo Bob (Sunny Suljic) o qual faz conexão simbólica direta com o título e está vinculado à estética, seja no sentido da vaidade mas principalmente do crescimento e evolução psicológica ou física.
O cervo em muitas culturas tem paralelo com o sol, com o mundo em seu equilíbrio, é um animal que representa a castidade e benevolência, há somente um personagem que se enquadra nessa definição, o único portanto que significa “algo que está por vir” e que, por esse motivo, é pouco reconhecido pelo pai como tal, visto em cenas que fazem alusão aos pelos nas axilas ou ao corte de cabelo – remetendo a poda, nesse caso, da virilidade – é importante notar que é em Bob que “recai os pecados do pai” primeiro, sendo que a primeira vez que o movimento das suas pernas (estrutura) param é em casa em em seguida no hospital – na escada rolante em um plongée total.
Apesar de diversas metáforas, nunca o longa se torna cansativo ou pretensioso demais, o equilíbrio existe e apesar de não possuir respostas explícitas, a sensação de desconforto que o desenvolvimento causa é por causa de pequenos elementos que, quando reunidos, fazem muito sentido, exemplos seriam os constantes elogios às mãos do protagonista, a filmagem com leve inclinação e lente grande angular que dá uma leve distorção nos cantos, como a sexualidade se encaixa implicitamente em momentos onde mãe e filha se despem, em momentos e contextos diferentes, ainda que semelhantes e assim por diante.
O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) dialoga com o terror, fantasia, drama, sem perder a essência que Yorgos Lanthimos estabilizou ainda quando fazia filmes na Grécia, possui uma urgência na mensagem extremamente universal, no entanto o faz através da mescla entre a psicologia e o misticismo – a maldição que assola os personagens jamais é explicada racionalmente, podendo ser entendida como uma condição natural, inclusive é curioso o fato de que quando ela é anunciada, é feita de forma rápida de modo a se enquadrar no tempo disponível do protagonista. Concluindo, é uma obra que impacta a sua maneira e mesmo que não atinja o potencial máximo do diretor, Kynodontas (2009) ainda é o seu expoente máximo, é mais um caminho para se refletir sobre diversos temas através da estranheza familiar e sentimentos individualistas, os quais ele trabalha costumeiramente.