Crítica: Gradiva (2006)
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Crítica: Gradiva (2006)

Tendo feito boa parte dos seus trabalhos mais conhecidos entre as décadas de sessenta e setenta, é no mínimo curioso assistir aos filmes mais recentes de Alain Robbe-Grillet e ver as nuances do tempo e suas implicações diretas no roteiro de seus filmes, além claro de outras decisões artísticas. Um ótimo exemplar dessa maturidade criativa é Gradiva (2006) que concentra a sua história em John Locke – evidente referência ao famoso filósofo que se destacou pela teoria da “tabula rasa” cuja ideia primordial é relacionar o homem como fruto de suas experiências mundanas; um papel em branco onde o sentir projeta nessa tela as transformações psicológicas e necessidades ao longo da existência – que está trabalhando no Marrocos, explorando o trabalho do artista Delacroix que exala sexualidade e aprofunda quem acompanha suas artes em sua psique enigmática.

John Locke vive em uma vila isolada chamada “Belkis”, com sua serviçal “Belkis” – interpretada com enorme talento pela atriz pornô Dany Verissimo-Petit – e enquanto pesquisa o trabalho do pintor, projeta sua jornada em sua própria vida. Perdendo-se, por fim, em uma infinidade de questionamentos onde a cidade, relação entre criação e criatura e desejo sexual se confundem. A obra segue os passos de um homem que não sabe de onde vem, muito menos para onde vai, é o “Alice no País das Maravilhas” do sexo.

Pinturas que remetem à sexualidade projetam em slide; um homem observa e a música diegética é como uma pluma, que representa o movimento astral e relevância entre a arte e a observação atenta. Giacomo Puccini: “Coro a bocca chiusa” é a canção, que por si só traduz diversos sentimentos com a boca calda. E o filme é assim, verbaliza muito e diz muito pouco.

A anatomia feminina carrega consigo a êxtase e os detalhes são contemplados como um enorme tempo religioso. No entanto, a exposição do corpo nu das mulheres pode facilmente cair na gratuidade, há diversas cenas que exalam um machismo grande, ainda que atravessando a primeira esfera, seja possível encontrar as explicações, todas elas relacionadas com o fato de que, o que assistimos, é de fato a mente do protagonista.

O filme se divide em dois tempos, um é a história central, a outra é a criação dela. Uma escritora senta em bares e cria, enquanto o seu próprio corpo produz a provocação para o seu personagem. Ela é a mãe e no mesmo tempo desejo (talvez personificação da sua carência carnal, desejo intrínseco de controle ou vingança?), o fato é que o primeiro e segundo ato são brilhantes em conduzir essas duas linhas narrativas e mesmo assim encontrar um oásis nos temas cruciais e a forma de expô-las subliminarmente.

Se por um lado existe a provocação e ela é sim muito hipnotizante, por outro a falta de profundidade dos personagens (há aqueles que digam que não precisa, afinal, é tudo onírico) faz com que a exposição citada anteriormente seja ainda mais grave em momentos pontuais. Alguns diálogos que dão total chance aos homens e objetificam as personagens, ainda que dentro de um contexto, podem transmitir aos desatentos uma má intenção com a feminilidade, fatalmente essa lacuna só aparece por conta de um roteiro que, apesar de interessante, perde-se em meio a sua complexidade.

Contudo, se estamos falando de criação artística, cabe ressaltar, “Gradiva” (2006) pode ser entendido como a liberdade de uma escritora refletindo sobre as atrocidades contra as mulheres. Sua escrita simboliza a mente operante, demonstrando como a sociedade patriarcal é frágil ao não saber lidar com a sexualidade feminina, pois coloca o seu desejo como prioridade e espera por tudo aquilo que lhe sirva.

Por esse motivo Belkis (Dany Verissimo-Petit) é a personagem mais interessante do longa. Ela fica em casa, esperando o seu “dono” e nesse processo ela se torna a casa – não é à toa que o seu nome é também o da pequena vila que o protagonista se encontra ou se perde -, ao passo que poderia ser traduzida também como o consciente de John Locke, aquele que parte da lógica, que se preocupa pelo desvio em direção à surrealidade e ilusão. Quando a consciência vê sua carne partindo nesse caminho árduo da insanidade, encontra no suicídio um refúgio para acalmar a dor silenciosa – Coro a bocca chiusa? – e seus seios à mostra demonstram a inerência materna do cuidado, endeusando a mulher e reduzindo John Locke a um selvagem insensato.

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