Crítica: Blonde
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Crítica: Blonde

Blonde

Ficha técnica:
Direção: Andrew Dominik
Roteiro: Andrew Dominik
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 28 de setembro de 2022 (Netflix)
Sinopse: Após uma infância traumática, Norma Jeane Mortenson (Ana de Armas) tornou-se atriz, na Hollywood dos anos 1950 e início dos anos 1960. Ela se transformou em uma figura mundialmente famosa, sob o nome artístico de Marilyn Monroe. Todavia, por trás dos holofotes da fama, a atriz vivia guerras pessoais, e suas aparições na tela contrastam fortemente com os problemas de amor, exploração, abuso de poder e dependência de drogas que ela enfrentava em sua vida privada.
Elenco: Ana de Armas, Lily Fisher, Julianne Nicholson, Tygh Runyan, Michael Drayer.

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Em 1950, Norma Desmond (Crepúsculo dos Deuses), uma das mais importantes personagens femininas da Hollywood clássica já denunciava a hostilidade dessa indústria machista e misógina para com as mulheres. O filme de Billy Wilder, que retratava a história de uma atriz que caiu no esquecimento na era do cinema falado mesmo depois de ter sido uma grande estrela no cinema mudo, já mostrava com muita lucidez e vanguardismo algo que nunca deixou de ser verdade no mundo hollywoodiano: o quão descartável são suas mulheres e suas histórias.

Rita Hayworth, Vivien Leigh, Marlene Dietrich, Ingrid Bergman, Audrey Hepburn, Marilyn Monroe. Mulheres símbolo de elegância, sensualidade, beleza e, quase sempre, comportamento. Um padrão estereotipado pela indústria com o aval de uma sociedade que reproduzia os mesmos pensamentos e tratava essas mulheres vendo apenas os seus papéis em grandes telas de importantes premières: como relegadas a adotarem uma personalidade que não eram suas, apenas para viver a fantasia dos outros. Especialmente de homens.

Hoje, em 2022, Andrew Dominik prova que esse pensamento mistificado, equivocado e completamente desprovido de qualquer humanidade ainda permeia a indústria hollywoodiana como uma nuvem carregada que jamais se dissipa. “Blonde” é a prova de que mulheres como Marilyn Monroe não se veem livres do male gaze e da objetificação que lhe assombravam a vida inteira nem mesmo depois de mortas. Em uma hora de filme, Dominik expõe a sua protagonista à dor e ao trauma, com cenas de estupro, aborto e uma tentativa de homícidio – este contra uma criança.

Primeiramente, é importante dizer que não penso que a dor, o trauma, a violência e a nudez sejam temas intocáveis, que devem ser tratados como tabu no Cinema. Afinal, poderia citar ao menos uma dúzia de filmes que utilizam de fortes cenas de violência ou de muitas cenas de nudez, por exemplo, como componente indispensável de sua narrativa. Essas são, sem sombra de dúvidas, ferramentas de impacto que, quando bem empregadas, são verdadeiramente capazes de provocar sentimentos que vão muito além da tortura pela tortura ou do fetiche pelo fetiche.

No entanto, não é isso que acontece aqui. A tortura começa pelas imagens de um estupro que foca na reação da vítima, mais que tudo. Continua pelas inacreditáveis cenas filmadas pela perspectiva de uma vagina, para retratar um aborto traumático. E, ainda, se finda por uma nudez de uma mulher que ensanguentada em seu pesadelo, chora pela perda de um filho que lhe foi tomado por muitas mãos diferentes, mas que hoje é revivido pela dor da culpa. Essas sequências são negativamente impactantes não apenas pelo seu inegável mau gosto, mas também pela retratação desrespeitosa e desumana de dores tão íntimas que assolam diariamente tantas outras mulheres.

Desde sua cena de abertura, Blonde não dá descanso ao seu espectador e nem à sua protagonista que, cena após cena, repete uma postura inerte diante de toda e qualquer desgraça que lhe acontece por torturantes duas horas e quarenta e sete minutos. Embora fosse uma mulher admirada por muitas outras mulheres de sua época e tenha uma legião de fãs até hoje, Marilyn Monroe aqui se reduz pelos seus traumas de infância, retratados de forma freudiana fundados na ausência do pai e na busca eterna pelo preenchimento dessa figura paterna, busca essa que segundo o filme lhe empurra para um ciclo nocivo de más figuras masculinas em sua vida. Passando de assédio para abuso e de abuso para violência doméstica.

A história, embora supostamente fictícia, baseada no livro homônimo de Joyce Carol Oates, usa da figura de uma mulher que de fato existiu e possuía vivências próprias, para reescrever uma história pelo viés de sua própria interpretação, usando como ponto de partida especialmente seus traumas. Me parece no mínimo desrespeitoso usar da imagem de alguém, juntar relatos, rumores e mitos ao redor dessa pessoa, e depois criar uma história disso como se fosse uma ficção criada do zero. Como se o ato de reescrever a vivência desse alguém não fosse, na verdade, mexer com a memória e a vida de quem teve suas próprias motivações, escolhas e sentimentos.

A manipulação dessa memória, da pior forma possível, já era uma escolha ruim suficiente para o roteiro, mas não é a única na vastidão de péssimas escolhas que o filme faz. Como se Mank (2020) fosse, usa da técnica e da sua estilização para ficar registrado em nossa memória, mesmo que toda essa maestria não contribua na prática com absolutamente nada na narrativa. Diferentes razões de aspecto, lentes, alternância entre o colorido e o preto e branco, diferentes e inúmeros planos e maneiras de filmar a mesma cena… nada disso impede que o diretor ainda trate sua protagonista como mero objeto.

É como se o Domink, na realidade, tivesse percebido no meio do caminho que essa história, já notadamente fraca desde o princípio da sua elaboração, de fato não possuía nada a dizer além de fetichizar e torturar a própria protagonista. Repetidamente. Assim, ele decide assumir o papel de torturador, transformar o filme em um torture porn, impondo ao papel interpretado por Ana de Armas, uma sucessão de violências das mais brutais e, como se não bastasse, uma nudez exagerada e muitas vezes sem nenhum propósito ou contexto. É uma sexualização e uma objetificação constante de Marilyn, ironicamente igual a como ela foi enxergada anos atrás, em um mundo teoricamente mais machista, em uma indústria mais nociva.

Ainda, pontuo que diferente do que muitos pensam, retratar a sua figura como ser humano e não como um objeto de tortura seria tudo, menos anacrônico. É, sim, plenamente possível retratar uma figura feminina e seus traumas com humanidade e respeito, menos misoginia e menos machismo do que se vê nesse filme. No entanto, o male gaze e o aparentemente desprezo do diretor pela própria protagonista nesse filme não se escondem em momento algum, especialmente quando usa do nu feminino em cena não para contar uma história, mas para ser apreciado como um pedaço de carne.

Blonde veio apenas para confirmar tudo aquilo que a indústria hollywoodiana ainda tem de pior, que é tratar mulheres e suas histórias como se fossem commodities. Como figuras que podem ter suas histórias de vida reescritas, descartadas, exageradas e expostas. A bel prazer de homens que, enxergando a dor nessas histórias, veem apenas uma oportunidade de lucrar com isso. É lamentável porque mesmo mais de 60 anos depois de sua morte, Marilyn Monroe continua tendo a sua vida definida pelos homens com quem se relacionou e pelos traumas que viveu.

No olhar de um homem, mais uma mulher que teve sua existência determinada pelas ideias que os outros tinham dela, se torna uma vítima. Mesmo após a morte. Voltando ao meu ponto de partida: Norma Desmond uma vez disse, em Crepúsculo dos Deuses, que ela não havia ficado pequena, que era grande, as telas que eram pequenas para ela. E, para encerrar, eu acredito piamente que o mesmo se aplica a Monroe. Pois, mesmo depois de tantas biografias, rumores e mitos sobre sua vida serem retratados nas telas, nenhuma das vezes me pareceu ser tão grande quanto ela foi. Me parece que jamais será.

  • Nota
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