Crítica: O Telefone Preto
O Telefone Preto
Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Scott Derrickson, C. Robert Cargill
Elenco: Mason Thames, Madeleine McGraw, Ethan Hawke, Jeremy Davies, E. Roger Mitchell, Troy Rudeseal, James Ransone, Miguel Cazarez Mora, Rebecca Clarke
Sinopse: Finney Shaw foi sequestrado por um sádico serial killer e está preso em um porão a prova de som, mas após um tempo ele começa a escutar as vozes das vítimas anteriores do assassino que o ajudam a sair do porão.
A garota Gwen (Madeleine McGraw) reza, antes de dormir, com sua bíblia e imagens religiosas que escondera cuidadosamente em sua casa de bonecas. Escuta barulhos não desejados vindo do corredor e pula rapidamente para a cama, amedrontada do terror que pode aparecer pela fresta da porta de seu quarto. Se tratando de um filme de terror, poderíamos imaginar essa construção de suspense culminando numa série de ameaças sobrenaturais prontas para provocar um jumpscare na garota e em nós – a audiência, mas a figura que espreita na penumbra se revela na voz em extracampo de seu pai alcoólatra, Terrence (Jeremy Davies) – um terror real e maior que qualquer manifestação espectral, numa noção que se reforça em toda a projeção de O Telefone Preto.
Momentos como aquele entre o pai e a filha se repetem no cativeiro em que Finney (Mason Thames) – irmão de Gwen e protagonista do filme – se encontra aprisionado, com medo dos males que seu enigmático sequestrador, apelidado “The Grabber (Ethan Hawke)” pode infligir. O vilão de Ethan Hawke veste uma assustadora máscara de demônio que carrega prontamente um significado sobrenatural maligno no Cinema de terror, mas quando o sobrenatural de fato se manifesta em O Telefone Preto, encontra-se nele a esperança e o amparo, com os espíritos de outras crianças que foram vítimas de The Grabber e tentam ajudar Finney a escapar, se comunicando através do telefone preto do título.
O filme é adaptado fielmente do conto de Joe Hill, mas esta poderia muito bem ser uma história clássica escrita por seu pai, Stephen King – principalmente no carinho e atenção com o qual se relaciona com o olhar das crianças, não só no texto, mas principalmente através das lentes do diretor Scott Derrickson (O Exorcismo de Emily Rose), que assina o roteiro junto de seu colaborador em A Entidade e Doutor Estranho, C. Robert Cargill. Como em algumas das obras coming of age de King, as figuras adultas aqui são retratadas em sua maioria com um distanciamento não só na forma como são filmadas nos planos dentro quadro, mas nas burocracias para resolver problemas, indiferença, e no desinteresse – a falta de fé que parece inerente do espírito das crianças, e principalmente nos protagonistas que acompanhamos aqui, os irmãos Finney e Gwen, ambos com intérpretes excelentes (Madaleine McGraw é um achado). Para eles são reservados todo a calor e o peso da proximidade dos close-ups: toda a verdade e importância da emoção pura.
A direção de Derrickson se revela, então, um dos maiores triunfos de O Telefone Preto. O Cinema de terror atual parece dividido majoritariamente entre as incursões mais comerciais de uma Blumhouse (que produz este filme) e a estranheza que já nasce com pretensões cult da A24. Dentro desses tipos, existe uma autoconsciência que se traduz em suas predileções formais e estéticas, do filme “parque de diversões” até o terror psicológico carregado de signos e atmosfera que muitas vezes parecem elementos colocados à frente de seus personagens, meros objetos da mensagem e da estética. Na direção elegante e sem muitas afetações visuais de Derrickson (as sequências filmadas em Super 8, utilizadas também em seu filme A Entidade, possuem lógica narrativa e funcionam no período em que o filme se passa: 1978), o foco das tensões, risos e dramas se dá pela força dos personagens, suas interações e o desenvolvimento dos mesmos, auxiliados por atores excelentes (Hawke está em um ótimo momento) e os momentos silenciosos que a câmera de Derrickson e seu diretor de fotografia, Brett Jutkiewicz, registra.
É crucial, portanto, que o filme reserve tempo na montagem para uma cena em que Finney assiste a Força Diabólica (1959) tarde da noite na TV, ou acompanhe um garoto andando de bicicleta pela vizinhança enquanto vemos as outras crianças e atividades daquele mundo acontecendo e o trazendo à vida – maior do que qualquer utilização de uma música famosa ou símbolo nostálgico poderia ser, como acontece em filmes que retratam a época e colocam tais obras sempre à beira de uma não intencionada cartunização. Assim, quando o sobrenatural entra num filme ancorado num mundo real e sem estilizações maiores, é sentido o peso do mistério e até um certo maravilhamento, muito pelo olhar das crianças (e seus diálogos bem escritos), que acreditam no mal muito terreno – tangível – e no bem – quase divino. Quando Gwen tenta conversar com Jesus de forma bem-humorada, logicamente aceitando sem duvidar que ele existe, quase esperamos que ele responda.
Repetem-se mais de uma vez em O Telefone Preto frases sobre “acreditar”, algo que falta nos adultos (inclusive mencionado sobre o vilão do filme – alguém que escutou o telefone mas preferiu não acreditar) e em algumas das vítimas. Ao invés de soar como algum tipo de doutrinação verborrágica sobre a fé religiosa, as dinâmicas registradas aqui (como acontece numa conversa catártica entre Gwen e seu pai sobre a falecida mãe da garota e de Finney) engrandecem essa noção porque, aqui, esse parece um dom da criança, como um super poder que se desgasta pela apatia do mundo adulto. A jornada de Finney estar inserida num contexto coming of age de criar coragem para se defender de valentões, falar com a garota da sala que gosta e acreditar em si mesmo só cimenta o fato de que o “acreditar” não precisa se perder na infância, mensagem que só atinge potencial pleno pelo carinho de Derrickson pelos seus personagens e a segurança com o qual o faz em sua elegante direção, num filme de terror fora da curva do que se vê no momento atual de um gênero que parece cada vez mais à beira de uma crise estética.