Pautas sociais podem salvar um filme?
Estive pensando sobre isso enquanto lia, nas redes sociais, uma série de opiniões distintas e discussões bastante fervorosas acerca da qualidade do filme Medida Provisória (2022) versus a importância das pautas sociais abordadas na obra. Enquanto uns argumentaram que o filme carecia de qualidade técnica, sendo um início extremamente fraco de Lázaro Ramos por trás das câmeras, outros apontaram a importância inabalável das pautas sociais abordadas por este, especialmente raciais, como o que era mais importante de fato e que, portanto, era o que deveria prevalecer na hora de escolher qual filme assistir nesse fim de semana. Mas a pergunta que fica para mim, afinal, é só uma: pauta social salva filme? Ou melhor, um discurso politicamente importante como parte de uma obra, objetivamente, tem a capacidade de deixar um filme “melhor”?
Foi impossível não voltar para o dia que assisti Marighella (2021), coincidentemente outra estreia de um ator brasileiro na direção, e senti um misto de emoções que não havia sentido em muito tempo. Mesmo emocionada aqui e ali, eu não achei o filme bom. Era um filme um tanto bobo, com uma direção claramente inexperiente, cheio de discursos prontos para serem postados no Facebook (isso é, quando e se alguém ainda usava a rede)… Não era nem de longe o melhor que poderia ser feito com o tema. Mas, ao mesmo tempo, a última coisa que eu queria era desincentivar as pessoas a irem ao cinema e consumirem obras nacionais, especialmente uma que tinha um discurso tão nítido, justo em um momento tão crítico politicamente como o que vivemos no Brasil.
Lembro de ter aliviado um pouco dessa “saia-justa” em que me encontrava quando escrevia minha crítica sobre o filme e tentei resumi-lo com a seguinte frase: “Marighella é uma obra onde a política foi maior que a arte”. Era meu jeito de dizer que dificilmente se tratava do melhor filme que você iria ver na vida, mas era importante que você ouvisse, claramente, o que a obra tinha a dizer. Naquele momento, me parecia justo. Até porque, nesse sentido, aproveito para esclarecer: eu realmente acredito na arte como um ato político. Artistas e suas obras mostraram ser, ao longo dos anos, verdadeiras para revoluções. A arte é cultura, e tudo que se faz nesse sentido ajuda a preservar a memória coletiva – que se torna essencial para não vivermos nos erros do passado.
O problema, no entanto, é que pautas sociais e a relevância política de determinado tema não podem ser tudo que basta para atribuir qualidade à uma obra e, nesse ponto, a mesma pessoa que escreveu a crítica de Marighella, meses atrás, não se encontra mais em mim. Meu posicionamento ora ambíguo e apaziguador me fez relevar uma série de questões que talvez até mesmo pela minha própria inclinação política, falaram mais alto que uma análise concreta e mais exigente com uma obra que tinha sim a possibilidade de sê-la. Hoje, penso que a sétima arte tem à sua disposição tantos recursos para contar uma história – só entre imagem e som são infinitas possibilidades de passar uma mensagem – que me parece um equívoco completo (e bastante preguiçoso) optar pelo texto, ainda mais quando repete um discurso tão simplista.
Filmes que realmente sabem o que estão fazendo, comovem sem a necessidade de invocarem tons professorais em seus diálogos o tempo inteiro. Apenas passam sua mensagem da forma mais cinematográfica possível, utilizando de maneira consciente e habilidosa todos os recursos que estão à sua disposição. Tudo se tornou mais claro para mim depois que assisti ao excelente Cabeça de Nêgo (2020), onde apenas a cena do protagonista em uma sala escura repleta de projeções é capaz de contar uma história mais eficiente que uma dezena de cenas de Marighella. A forma como a música se funde com as imagens e a própria situação em que o protagonista se encontra é uma expressão do Cinema como uma arte que, na maior parte do tempo, só precisa deixar que as imagens falem por si mesmas.
Devemos entender que não é apenas porque um filme tem uma boa intenção, que o resultado final será uma obra-prima. E digo mais: em um mundo capitalista e naturalmente cheio de interesses, uma “boa intenção” pode ser apenas uma estratégia para arrecadar mais bilheteria e assim, atrair uma comunidade específica para os cinemas. Alguém consegue lembrar que J. K. Rowling foi publicamente transfóbica há menos de dois meses enquanto Segredos de Dumbledore é lançado mundialmente com a propaganda massiva de que o filme tem grande representatividade LGBTQIA+? Por um momento, saber que quem lucra com o sucesso de um filme como esse é alguém com um discurso contrário ao que este propaga é uma informação irrelevante: ver um pequeno diálogo representativo já basta.
O mesmo acontece com filmes da Disney onde teoricamente teríamos que nos contentar com pequenos sinais da sexualidade de alguns personagens porque, no fundo, o que tá acontecendo é que a empresa desaprova todas as demonstrações explícitas de afeto LGBTQIA+ enquanto financia projetos de lei que vão contra a existência da comunidade. Nesses casos, volto à pergunta: somente a pauta social basta? Quando interesses mercadológicos vêm em formato de boas intenções e quando filmes teoricamente importantes apenas repetem discursos batidos, o que vai diferenciar uma crítica especializada de uma opinião apaixonada? Esse é o problema do uso de pautas sociais como único critério para consumo de determinada obra ou para atestar padrão de qualidade. É o preço que se paga quando decidimos abrir mão de pensar criticamente: assumir o risco de gerar equívocos como esses.
Ao excluir o criticismo, podemos cair em retóricas superficiais, as quais, na intenção de defender determinada ideia, na realidade estamos podando nosso pensamento crítico e fazendo justamente o contrário do que um crítico de arte deveria fazer: criticar. O ato de pensar criticamente a arte deve independer de posicionamento político ou pautas sociais “quentes”, e incentivar que as pessoas pensem por si mesmas não significa limitar aquilo que pensamos, significa expor aquilo que entendemos (e estudamos para tal) e, assim, esperar que o leitor extraia o que puder (e quiser) disto. É isso que, na efervescência de um mundo cada vez mais digital, onde é cada vez maior a necessidade de se opinar sobre tudo, irá diferenciar uma opinião despretensiosa de uma crítica especializada.
Diante do momento político repleto de discursos inflamados em que vivemos, é compreensível que eu mesma tenha achado mais seguro seguir o caminho mais fácil que trilhar o caminho das pedras, quando escrevi sobre Marighella. Entretanto, não cometerei o mesmo equívoco com Medida Provisória (quando assistir). Embora ainda flerte com a ideia da arte como ato político, jamais pensarei novamente que isso é o bastante para formar um filme de qualidade. Filmes regulares serão filmes regulares, obras-primas serão obras-primas: independente de pauta. Pois é necessário separar o joio do trigo e criticar, no sentido mais analítico possível, a arte. Seja qual for o cenário.
Bons filmes, que compreendem a linguagem cinematográfica e, portanto, se fazem entender sem muitos recursos além dos mais essenciais e pungentes, imagem e som, não deixam sobrar sequer espaço para questionamentos sobre “pauta” e “salvação”. Em bons filmes, não há muito espaço para dúvidas ou relativismos. Dificilmente existirá a necessidade “relevar” coisa ou outra, porque tudo se encaixa. Uma coisa é certa: com boas intenções ou não, bons filmes não precisam que pautas sociais os salvem. São obras que estão bem longe de qualquer debate que envolva a palavra salvação – simplesmente não precisam.