Crítica: Licorice Pizza
A liberdade é a essência da juventude. Correr é uma das principais associações físicas do corpo para a libertação. Quando corremos, seja qual for a direção, nem sempre estamos tentando fugir de alguma coisa, às vezes a corrida é um ato que faz parte de se encontrar. A juventude, como sabem os mais velhos e saberão os mais novos, mais breve do que pensam, é ter a sensação de se poder viver inúmeras vidas se assim quiser, apenas para no final estar diante de uma só – fruto de uma escolha. Em Licorice Pizza, todas as luzes estão em Alana, uma protagonista para qual se correr fosse um esporte, estrelaria como maratonista da sua própria vida. Uma jornada estranhamente deliciosa de se acompanhar.
Digo estranha porque de fato é. Seja porque existe um Bradley Cooper bizarro trajado de Jon Peters, ou uma agenciadora assustadora na forma de Harriet Sansom Harris. Ou talvez porque Alana e Gary têm um abismo de distância de idade absurdo e esse fato parece importar cada vez menos ao longo da trama. Ou mesmo porque uma menina de 25 anos parece ter uma vida ainda mais desajustada que um ator-mirim de 15. Por todos esses motivos, Licorice Pizza é um filme que transforma o comum em incomum e, por isso, se torna um dos filmes mais interessantes do último ano.
O próprio formato em que Paul Thomas Anderson escolhe contar essa história de amor improvável (e, para muitos, até reprovável), é de causar estranhamento e nos captura, também, pelo constante exagero. É quando devemos concordar: de fato não há nada mais realista que uma juventude estranha e exagerada. Decerto que a liberdade é parte inerente da juventude, mas não vem desacompanhada. Estranhar a si mesmo faz parte do processo de libertação, se sentir desajustado e fora de órbita é apenas um dos preços que se paga no caminho de tentarmos ser verdadeiramente livres. Quanto ao exagero, a juventude também traz consigo a proporção acentuada de sentimentos conflituosos. É parte dessa fase ser excessivo, se permitir sentir de tudo.
É por isso que Paul Thomas Anderson faz um filme episódico, carregado de absurdos. A todo momento, Gary e Alana estão diante de situações inusitadas, cercados por personagens extravagantes. E isso, embora tenha sentido dentro da lógica da juventude e dialogue muito bem com a análise que o diretor desenvolve ao final, não precisa refletir de imediato na história do casal protagonista. Se trata de uma viagem, apenas. De um filme que é sobre o caminho, não sobre o destino. Quem não sabe aproveitar a jornada, vai sempre se perguntar para onde está sendo levado, e esse não é o objetivo de Licorice Pizza.
É exatamente aqui que, para mim, mora a beleza do filme. Às vezes, PTA vai usar personagens “de uma cena só” para performar o absurdo pelo absurdo e provocar uma comicidade apenas pelo prazer de percebê-la. Tão jovem quanto seus protagonistas, o filme não está preocupado em explicar-se, nem mesmo seu título se explica (a explicação está completamente fora do filme, em uma lembrança nostálgica do diretor). Na contramão dessa tendência recente de cobrança exaustiva pela tal da “verossimilhança” (cujo uso da palavra geralmente já parte de uma distorção), filmes como Licorice são alento no coração de quem busca uma história agradável executada com um domínio técnico fascinante, algo que só poderia ter partido de um diretor cuja filmografia se fez invejável ao longo dos anos.
Filmes de época (Sangue Negro), de drama (Magnólia), comédias românticas (Embriagados de Amor) e videoclipes (praticamente todos das irmãs HAIM), fazem parte da carreira desse diretor que possui tanta expertise sobre o que faz, que ao invés de investir em mais um filme de drama que poderia lhe render uma indicação certa ao Oscar, preferiu se jogar em um subgênero que, embora popular, muitos julgavam morto após o “boom” que recebeu nos anos 2000: a comédia romântica. Licorice é, no final das contas, uma comédia romântica muito bem elaborada e que só funciona tão bem porque abraça esse subgênero e atualiza sua narrativa para fazer sentido em 2022.
Os arquétipos tradicionais das comédias românticas deixaram de fazer sentido com o tempo, e isso foi provado pelo declínio do sucesso do subgênero com o passar dos anos. Os paradigmas de relacionamento de outrora hoje fazem menos sentido que nunca, e entender a nova dinâmica das relações é fundamental para inovar as comédias românticas e reposicionar o subgênero tão amado pelo público. Alana e Gary não são um casal tradicional, é fato e a diferença de idade não é o único motivo para isso. Alana é uma mulher de personalidade marcante, mas que de certo modo ainda está perdida no tempo.
Afinal, quem nunca se sentiu perdido no tempo com seus vinte e poucos anos? Pode ser que nos anos 70, Alana tenha sido uma exceção. Mas nós, no século 21, sabemos bem que estar perdido no tempo com seus vinte e poucos anos não é apenas comum, é também esperado. Se identificar com a protagonista é inevitável, seus dramas são profundamente reais e o conflito de se relacionar com alguém que tão novo acredita saber tudo, é relacionável A juventude em Licorice, é representada em diferentes fases, por Alana e Gary, mas que se encontram no ponto comum onde o amor é sinônimo de liberdade.
Se La La Land é uma carta de amor à uma Los Angeles dos sonhos, então Licorice Pizza é uma carta de amor à uma Los Angeles caótica, real, enérgica e errática. Enquanto a cidade de Chazelle é fruto de um amor idealista por uma cidade fantasiosa, o de Paul Thomas Anderson é um conjunto de crônicas bem-humoradas em uma cidade-lar que está mais viva que qualquer cenário. Se antes amamos um casal perfeito no cenário mais sublime, com PTA aprendemos a amar um casal improvável em uma cidade imperfeita. São duas Los Angeles diferentes, que refletem estilos de direção e objetivos distintos. É a magia do Cinema.
A pandemia despertou em toda humanidade a necessidade de resgatar e relembrar tempos mais felizes. Essa tendência nostálgica, quase mágica mesmo, se refletiu nas músicas, na moda e claro, no Cinema. Faz sentido que PTA tenha recorrido à sua juventude para buscar inspiração para um novo filme. Relembrar de tempos mais simples, trazer uma história mais leve, não é apenas algo que faz sentido para o diretor, faz sentido também para um público que tem buscado esse alívio diante de tempos muito pesados. Sorrir com um Bradley Cooper altamente exagerado quebrando um carro sem razão aparente, ou com um Sean Penn cheio de si arriscando sua vida para reproduzir uma cena extremamente perigosa, é algo que estávamos precisando coletivamente.
O Cinema, como as demais artes, é produto do seu tempo. Reflete na vida, assim como a vida o reflete de volta. O amor e a liberdade são necessidade em um mundo pós-pandêmico, onde a vivacidade da juventude em uma tela widescreen é capaz de nos encher os olhos e resgatar os sentimentos mais positivos. A nostalgia de tempos mais simplistas e o humor provocado por essas narrativas mais leves fazem mais sentido que nunca em 2022. Assim, Paul Thomas Anderson comprova não apenas seu inegável talento, como abre uma porta para as infinitas novas possibilidades para as comédias românticas, que nunca estiveram mortas de fato, só precisavam de uma releitura precisa o suficiente para “nos trazer de volta à vida”.