Crítica: Pânico (2022)
Na autoconsciência excessiva e emburrada, novo Pânico se impede de se divertir consigo mesmo.
Sinopse: Vinte e cinco anos após uma série de assassinatos brutais chocar a tranquila cidade de Woodsboro, um novo assassino se apropria da máscara de Ghostface e começa a perseguir um grupo de adolescentes para trazer à tona segredos do passado mortal da cidade.
Direção: Matt Bettinelli-Olpin & Tyler Gillett
Roteiro: James Vanderbilt & Guy Busick
Elenco: Melissa Barrera, Kyle Gallner, Mason Gooding, Mikey Madison, Dylan Minnette, Jenna Ortega, Jack Quaid, Marley Shelton, Jasmin Savoy Brown, Sonia Ammar, with Courteney Cox, David Arquette e Neve Campbell
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Wes Craven e Kevin Williamson entenderam, quando retornaram para a franquia Pânico dez anos após o terceiro filme, em Pânico 4, que a série de filmes encabeçada por Neve Campbell, Courteney Cox e David Arquette cravara há muito tempo seu lugar no panteão dos clássicos do terror. Se o primeiro filme comentava e desconstruía o terror de slashers, bem como os tropos e convenções popularizados por estes, começando pelo primeiro Halloween (1978), de John Carpenter, agora Ghostface se juntara ao lado dos Myers, dos Voorhees e dos Kruegers (outra cria de Craven) como um ícone do terror. Cimentado esse legado, a série então carregava consigo, também, sua própria iconografia, suas próprias convenções e estruturas narrativas. A própria franquia se tornou objeto de paródia.
Assim, os comentários metalinguísticos daquele quarto filme faziam graça logo de início não só das condições exigidas pela primeira morte na cena que abre o filme (as garotas sozinhas em casa, o telefone tocando, o sadismo psicológico imposto por Ghostface e seu senso de humor, a frase ‘’what’s your favourite scary movie?’’), mas também da autoconsciência que a própria franquia popularizou nos filmes adolescentes dos anos 2000 que queriam ser o ‘’novo pânico’’. ‘’Essa porcaria pós-moderna metalinguística, autoconsciente já foi feita a exaustão’’, dizia uma enfurecida Ana Paquin no filme dentro do filme. Mais do que isso: se os filmes Pânico tomaram para si o dever de comentar não só sobre o cinema de terror, mas a indústria de Hollywood dos tempos em que estavam inseridos (Pânico 3 cresce na revisita pós escândalo Harvey Weinsten, pós movimento ‘’Me Too’’), o que o quarto filme poderia dizer, 10 anos depois, sobre o gênero? Na geração bem-informada, hiper-conectada e sarcástica do final dos anos 2000, não é mais apenas o nerd Randy (Jamie Kennedy) que sabe das regras dos filmes de terror, repetidas a exaustão pela própria quantidade de remakes que marcou os anos 2000 no terror popular. Mesmo nos seus 70 anos, Craven fazia máximo proveito da geração Youtube, que engatinhava para a era streamer, aproveitando o potencial oriundo de mortes filmadas ao vivo e sequências de gato e rato transmitidas agora através de dispositivos digitais.
Além do senso de diversão proporcionado não só pelos momentos farsescos, mas pela eficácia das gags visuais e brincadeiras com a expectativa da audiência promovidas por Craven, existia um claro apego aos três protagonistas da série, Sidney Prescott, Dewey Riley e Gale Weathers como as âncoras emocionais da franquia. Prova disso era justamente o apego à continuidade. Na era dos remakes e do apelo comercial que traziam consigo, o quarto filme chegava às telonas com o número 4 estampado em si, um excelente filme que também era a melhor sequência da franquia.
Acima de tudo, o que Williamson e Craven tiravam do terror dos anos 2000 – e vocalizavam através da boca dos vilões de Pânico 4 – era que aquela geração, mais do que a dos remakes, estava inserida num contexto pós 11 de setembro que colocou em evidência o cinema do torture porn nos Estados Unidos. Em meio ao cinema de tortura dos Jogos Mortais, as mortes deveriam ser mais extremas, mais gráficas. Se Pânico 4 comentava sobre a geração do sadismo, este novo Pânico chega para dizer de forma não intencional que está aqui para exercer a autocrítica com medo de ser cringe; o sadismo da nostalgia tóxica.
É muito sintomático da nossa geração super autoconsciente, aversa a sentimentos não-irônicos, que uma personagem comente o fato de que este novo filme (ela pode estar falando sobre a série de filmes ‘’Stab’’, presentes dentro do universo que assistimos, mas no fim das contas está comentando sobre Pânico) não possui o numeral 5, porque os realizadores querem fazer um semi-reboot que também é uma sequência, trazendo personagens clássicos enquanto adiciona um novo elenco e remete sempre que pode ao primeiro filme da franquia, tentando emplacar o sucesso de filmes como “Halloween” de 2018. Deve ser um dos momentos mais cínicos e mal-intencionados desse “cinema para o fã” recente. Se filmes como Matrix Resurrections – em cartaz no momento – e os próprios filmes anteriores da franquia Pânico utilizavam da metalinguagem e autoconsciência ora como forma de desconstrução, ora como proposta para discussão do gênero, o novo Pânico confunde autoconsciência com autocrítica condescendente.
Se o filme utilizasse tal condescendência para alguma subversão de tropos, como ocorria nas produções anteriores, não haveria problema. No entanto, o que existe é o comentário crítico das convenções apenas pra serem replicadas, numa forma de autodefesa que parece covarde justamente pelo fato de o filme criticar elementos e exercê-los mesmo assim, prova de que essa geração entendeu tudo errado. Enquanto aqueles filmes claramente amavam o gênero no qual estavam inseridos e apontavam suas engrenagens em chave de autorreflexão, o novo filme faz a autocrítica na intenção de se munir previamente de críticas externas, como se a metalinguagem por si só bastasse. É a autoconsciência pelo medo de ser cringe. Ao invés de abraçar a farsa ou utilizá-la como combustível de subversão e catarse, os comentários do roteiro escrito por James Vanderbilt e Guy Busick evidencia um não entendimento da franquia, que nunca negou seu potencial de parque de diversões. O novo Pânico se impede de se divertir consigo mesmo.
O filme se inicia de forma promissora, comentando diretamente o termo do “terror elevado” – popularizado pela produtora A24 – que é atribuído a produções como ‘’Midsommar’’, ‘’Babadook’’ e ‘’A Bruxa’’, filmes de terror considerados “de prestígio” por um grupo da cinefilia. É apenas lógico que, entrando na nova década, a franquia explicite diferenças e hipocrisias dentro do gênero evidenciando as diferenças de um filme slasher, de “terror descompromissado” como Pânico, em comparação com o terror “psicológico e sensorial” da moda. A dupla do bom Casamento Sangrento (2019), Matt Bettinelli e OlpinTyler Gillett, comanda o novo capítulo, e, se não implementam alguma característica distinguível na identidade do filme, ao menos são competentes em sequências como aquela que abre a produção, na qual temos um momento de tensão potencializado por uma porta de tranca automática acionada por aplicativo de celular, um exemplo de sadismo que diverte e é eficaz também visualmente. Passada a sequência inicial, em que o filme insinua o aproveitamento temático que vem com a nova geração em mais de uma camada, o filme logo se entrega ao aborrecimento da reciclagem. Ao apontar constantemente para ela ao passo que a realiza, parece uma obra que não respeita a si mesma, e nem ao público, que verá comentários do novo filme sobre como as sequências do primeiro Pânico são consideravelmente inferiores ao primeiro (algo que não é necessariamente verdade) e os receberá com risadas por comprar a conversa de que estamos vendo uma sátira afiada.
Ora, se o filme critica veemente o fã tóxico e saudosista que de fato existe, os diretores se esforçam em construir uma produção ancorada em nostalgia para agradar justamente a este fã mais fervoroso. Enquanto os filmes anteriores entregavam motivações rasas para alguns de seus vilões (o que por vezes também servia de comentário), o novo filme joga algumas palavras-chave como código (“como fandom pode ser tóxico?!”, “nós nos conhecemos no subreddit da franquia Stab”), optando pelo comentário mais fácil, disfarçado de esperto apenas pelo elemento da metalinguagem, pela autoconsciência. Se o filme conseguisse se entregar ao menos à farsa de vez, o exercício poderia ser validado. Na renúncia de se aceitar como tal, inteiramente na defensiva, temos um filme incapaz de ganhar vida. É interessante conceitualmente o que o filme faz com o legado de Billy Loomis, um dos assassinos do primeiro filme (conceito explorado até mesmo em O Massacre da Serra Elétrica 3D – a Lenda Continua), mas tal conceito é prejudicado pela atuação sofrível da nova protagonista.
O novo Pânico, desta vez sem o numeral 5, faz a renúncia proposital do direito de ser visto como uma sequência, desdenhando os filmes anteriores vocalmente, acreditando ser peça fílmica de valor maior apenas por identificar as estruturas do gênero no qual está inserido, sendo assim uma representação não intencional da geração movida a cinismo da atualidade, incapaz de se divertir sem que a digam quando devem rir. Daí vem a genialidade de Craven e Williamson: mesmo utilizando a metalinguagem como comentário e evidenciando essas estruturas, nunca se sentia que os filmes anteriores tinham vergonha do gênero, se divertindo imensamente com a subversão e seus personagens e usando esse comentário como ponto de partida para fazer, nos piores momentos, um exploitation, e nos melhores momentos, a catarse que só os melhores filmes de terror podem proporcionar.