Crítica: Sem Tempo Para Morrer
James Bond, o icônico agente secreto 007 criado por Ian Flemming, é um personagem marcado pela imutabilidade. As aventuras autocontidas permitiram que Bond vivesse através de um grupo de intérpretes sem muito apego a uma mitologia, mesmo que alguns coadjuvantes permanecessem os mesmos e que tivéssemos pequenas referências a filmes passados.
Nos filmes estrelados por Daniel Craig, entretanto, o que vimos foi cada vez mais um apego canônico à saga de seu reboot (Craig é o segundo ator que mais interpretou Bond – cinco filmes contra os sete de Roger Moore), algo que, entrando nos anos 2010, pareceu surgir como uma maneira de manter o público interessado em sua jornada. De repente, os tropos e convenções que acompanharam o personagem não eram mais suficientes, e os produtores seguiram o caminho da continuidade para tornar o agente mais interessante. Se previamente Bond não mudara sua natureza ou evoluíra como personagem, os filmes narrativamente acompanharam as tendências dos tempos em que eram feitos. Os filmes de Craig surgiram nos anos de Jason Bourne, e por um tempo adotaram a identidade visual da franquia de Matt Damon, principalmente em como as cenas de ação eram fotografadas. Os filmes da era Craig deverão ser lembrados, no entanto, pela pergunta que frequentemente pareceu pairar sobre estes: quem é o homem por trás do agente 007?
Mas essa progressão sempre pareceu uma eterna correção de percurso nos filmes de Craig, dos capítulos mais fracos aos excepcionais. Quantum of Solace (2009) parecia mais um epílogo do excelente Cassino Royale (2006) – muito provavelmente por causa da greve dos roteiristas que afetou a qualidade de tantos filmes na época -, um filme que amarrava pontas soltas de um passado recente. O ótimo Skyfall (2012) revisitava o passado do agente como órfão enquanto colocava Bond numa espécie de crise da meia idade, recolocando-o, ao fim da projeção, num caminho de status quo. Com a vontade de Craig de se aposentar do papel (ainda que tivesse mais um filme restante em seu contrato), Spectre (2015) voltava novamente ao passado do agente, coectando todos os filmes anteriores através da própria organização maligna que dava título ao filme. Sendo até então o último filme de Craig no papel, Spectre procurava fechar as pontas soltas, ao mesmo tempo em que tentava desenvolver o personagem numa trajetória pessoal também de fechamento. O agente com licença para matar agora se questionava sobre quando não deveria puxar o gatilho. Porém, para um personagem que teve como uma de suas principais características o fato de ser um mulherengo incorrigível (a quantidade de bond girls não mente), o crescimento de Bond era representado através do amor: 007 finalmente encontrara a mulher com quem desejava passar o resto de sua vida, Madeleine (Léa Seydoux).
O clima de despedida de Spectre soa mais estranho, então, com a chegada deste 007 – Sem Tempo Para Morrer, agora sim o último filme de Craig à frente da franquia que chega ao filme de número 25. O capítulo final da era Craig continua a relação de Bond com Madeleine, volta novamente ao passado, inclui mais segredos não contados e coloca o agente em conflito consigo mesmo novamente. Fica a cargo do diretor Cary Joji Fukunaga (da ótima True Detective e da afetada Maniac) encerrar a saga de Craig de maneira satisfatória para o fã da franquia, para a crítica especializada e para o grande público. Ainda é uma megaprodução de estúdio, então o filme pretende agradar a todos. O resultado é irregular.
A necessidade de decifrar (criar) traumas e explorar este James Bond como indivíduo vem, também, porque o personagem se tornou um tanto quanto anacrônico, e a forma com que o filme trata a inclusão de Lashana Lynch como Nomi, a agente que assume o manto de 007, é acertada. Uma minoria vocal torceu o nariz para a escalação da atriz por razões mais do que erradas, mas o problema mesmo era como essa inclusão seria feita intra-filme. O roteiro de Neal Purvis, Robert Wade e do próprio Fukunaga acerta, então, em fazer com que essa adição não soe apenas como uma obrigatoriedade de um estúdio que quer dinheiro enquanto tenta se preocupar com pautas relevantes e necessárias do mundo extra-filme, mas sim em tratá-la como um ponto de roteiro que é abordado pelos personagens em cena e pelo próprio Bond, que se mostra incomodado com a nova agente que o substitui. A resolução é elegante como os filmes de 007 deveriam ser: “é só um número”, diz a própria Nomi.
O longo prólogo do filme é muito bom nesse sentido da progressão sentimental de Bond, mostrando uma vida amorosa que só vimos de relance em Cassino Royale, com a Vesper de Eva Green, e o início de Sem Tempo Para Morrer resulta numa cena de despedida emocional como poucos momentos na franquia, onde sente-se o peso do relacionamento de Bond e Madeleine como poucas vezes desde a apressada e desajeitada forma com que essa relação foi introduzida em Spectre.
Porque esse foi o mal de Spectre, como é também em muitos momentos de 007 – Sem Tempo Para Morrer: o problema não é adicionar camadas a Bond e torná-lo mais sentimental ou complexo; fazê-lo se apaixonar ou querer largar a vida de espião, e sim o quanto essa progressão soa crível e verdadeira. Quando ouvimos alguém dizer que tais propostas não combinam com 007, geralmente sem saber explicar exatamente o porquê de achar isso, é porque o filme desenvolveu tais temas de forma desengonçada. Assim, para um filme de 2h 43min – o mais longo da franquia – é surpreendente como este filme parece apressado na segunda metade, justamente onde pretende fechar as pontas emocionais da trajetória deste Bond e, também, de Craig.
Na primeira metade, temos alguns dos melhores momentos do ator e de Bond, equilibrando um senso de humor com um sentimentalismo que é bem-vindo e pouco explorado, intercalados com cenas de ação que, se são econômicas na diversidade de locações e situações dentro dessa era, ao menos são conduzidas com segurança e conseguem empolgar. Mas quando o filme começa a colocar as peças que terão papel essencial no fechamento deste filme e franquia, o filme parece tropeçar nestas muito por causa do ritmo. O vilão vivido por Rami Malek é um grande sintoma desta sensação, e isso se deve muito pela forma que é apresentado na primeira cena do filme – uma das melhores da projeção inteira. Praticamente um personagem de filme de terror e com um visual inspirado, Safim é apresentado com uma máscara de influência oriental que é predominante até mesmo na sequência de créditos iniciais do filme (embalada com a fraca e anticlimática canção No Time To Die, do surto coletivo Billie Eilish). A eficaz introdução do vilão se revela como uma grande propaganda enganosa. O fato de o antagonista vivido por Malek ter apenas poucos minutos de tela no filme não seria exatamente um problema, já que suas ações deveriam em tese mover grande parte dos conflitos vistos aqui. No entanto, como a máscara do vilão, que nem está particularmente presente no resto de Sem Tempo Para Morrer, a presença de Safim não é sentida durante o filme, e em suas poucas cenas o estoicismo de Malek o torna apenas esquecível, ao passo que seu grandiloquente plano maligno (à moda dos vilões de 007) soa apenas sem sentido.
Este capítulo final tem sido comparado a filmes-encerramento de grandes franquias, como Vingadores – Ultimato, e não por acaso. Sente-se a todo momento essa busca pelo épico. Se 007 sempre foi uma franquia de ameaças e tramas com potencial de destruição global, o novo capítulo busca esse épico através do sentimentalismo e a conexão a um “universo maior”, como nos filmes da Marvel. Todas as pontas soltas do passado de Bond precisam ter fechamento definitivo, feito aqui muitas vezes de forma abrupta, trazendo personagens do passado apenas para matá-los, na intenção de trazer gravidade. A diferença é que, se no caso de obras como Ultimato, por mais protocolar que seja, existe ao menos uma espécie de plano seguido desde os filmes anteriores, o novo filme de Bond tem a ingrata tarefa de tentar, em um único filme, repassar – e refazer – esse final a partir de um filme que já era pra ser um final (Spectre), e que por sua vez vinha de uma série de produções que tentavam, também, “resolver” o personagem de Bond de forma definitiva.
007 – Sem Tempo Para Morrer é, então, um filme representativo da era Craig: um filme que busca, com resultados irregulares, a compreensão de quem é o homem por trás de 007, desta vez com um final definitivo que, como no resto da projeção, parece vir mais pelo fim de Craig à frente do papel, e não como o fechamento lógico da trajetória de seu James Bond, que será lembrado justamente pelo seu excelente intérprete, e a busca de seus produtores que, em cinco filmes, tentaram entender quem é James Bond.