Space Jam – Um Novo Legado: “É um filme para crianças!”
Um dos argumentos mais injustos usados para defender filmes infantis ruins é aquele de que “o filme é feito para crianças”. Palavras como “você esperava uma dissertação sobre a condição humana?” são frequentemente jogadas na roda, como se existissem apenas esses extremos hiperbólicos. Não, as produções para os mais novos não precisam ser um poço de complexidade. Nem todas as animações e filmes direcionados aos pequenos precisam ser um filme estereotípico da Pixar ou do Estúdio Ghibli. Além de subestimar a inteligência e capacidade de assimilação das crianças, essa defesa parece sugerir que elas devem se contentar somente com o básico do básico, com o medíocre. Os filmes da Pixar encantam os adultos e os pequenos em primeiro lugar porque são histórias bem contadas. E se as mensagens dos temas “complexos” são compreendidas pelas crianças, isso acontece apenas porque o contar da história é palatável, de fácil entendimento. Parece tolice adentrar nessas discussões para falar sobre a franquia Space Jam, que é assumidamente um produto, um filme de marcas para divulgar mascotes (seja a marca Looney Tunes ou as marcas “Michael Jordan” e “LeBron James”), mas essas defesas surgem aos montes com este “Space Jam – Um Novo Legado”. Ninguém espera complexidade de Space Jam. Estamos falando dos Looney Tunes, do humor pastelão e físico que eles trazem. Mas até as produções mais despretensiosas precisam do básico que é uma história bem contada. E toda criança ama uma história bem contada.
Esse papo de nostalgia parece propício se levarmos em conta os consensos em torno de Space Jam – O Jogo do Século. Estrelado por Michael Jordan e pelo Pernalonga, o filme de 1996 é visto por muitos como um filme ruim que é adorado apenas por seu valor nostálgico, pelo saudosismo das pessoas que o assistiram enquanto pequenos e se lembram da produção, agora adultos, com o olhar carinhoso. Porém, revisitando Space Jam, temos um filme que, pela sua essência mercadológica, é muito melhor do que deveria ser em primeiro lugar. Ainda é um filme dos anos 90, claramente um produto inserido naquela época não só pela estética, mas também por questões como a Lola Bunny hipersexualizada, algo que é corrigido neste segundo filme. No primeiro Space Jam, os Looney Tunes precisam da ajuda do jogador de Basquete e superastro Michael Jordan para vencer uma partida contra diminutos alienígenas que roubaram o talento dos melhores jogadores da NBA.
O primeiro filme funcionava, pois Space Jam era muito competente em suas propostas. Uma ótima trilha sonora pop embalada com momentos pastelão que respeitava a essência de seus personagens. Eventos da vida real (a breve aposentadoria de Michael Jordan para fora das quadras de Basquete em direção aos campos de Baseball) se misturavam com eventos fictícios de forma criativa. Havia a inocência do mundo fantasioso (mesmo que as gags físicas e violentas dos Looney Tunes ainda fossem o foco) – como o fato de os Aliens roubarem o talento dos jogadores – intercalada com comentários sarcásticos como os de Bill Murray (sempre ótimo, interpretando a si mesmo). Sentia-se um comprometimento até mesmo com algumas sequências que mais pareciam semi-esquetes, como aquela onde os jogadores da NBA tentam achar uma cura para sua repentina perda de talento, embalada pela música Basketball Jones, que resultava na cena em que Charles Barkley tentava jogar basquete com um grupo de jovens, apenas para ser expulso da quadra por ser visto como um impostor. O mais louco: a sequência culminava neste momento até melancólico onde nos importávamos até mesmo com um coadjuvante – um coadjuvante que na verdade era uma figura real do Basquete. “Space Jam – O Jogo do Século” era o puro suco da cultura dos anos 90 de várias formas. Porém, o mais importante: no meio de marcas e merchandising, se parecia, de fato, com um filme. A história era simples e contada de forma direta, mas a narrativa em si se dedicava com eficácia ao tom que cada cena pedia. Existia essa simplicidade de um filme que utilizava, de fato, os Looney Tunes como a atração principal. Quando Pernalonga e Patolino iam até o mundo real para recuperar os sapatos de Jordan em sua casa, os dois não estavam inseridos numa situação mirabolante. Tínhamos uma sequência “de suspense” bem-feita, e o filme tinha noção de que não precisamos de muito mais do que estes personagens agindo como eles mesmos.
E vamos para Space Jam 2: LeBron James entra no lugar de Michael Jordan, algo que faz sentido no fenômeno do jogador e tudo que ele representa para a nova geração. Desta vez é LeBron que precisa da ajuda dos Looney Tunes, após ser exilado para a terra deles por Al G Ritmo, uma inteligência artificial que sequestrou seu filho e só o devolverá caso LeBron ganhe dela em uma partida de um jogo de basquete. Mais uma vez, as comparações: no primeiro filme existia uma sequência em que os Looney Tunes se preparavam para a partida de basquete do título. Víamos uma comoção de carros com personagens deste universo do lado de fora do estádio, entrecortado com os desenhos animados se preparando para o jogo junto da trilha sonora que construía expectativa. Era possível sentir que veríamos algo épico pela eficácia da contação da história, mesmo que, quando crianças, não conseguíssemos identificar o porquê dessa sensação.
Em Space Jam 2 temos uma cena que quer provocar a mesma sensação “épica”: na preparação para a partida, o vilão do filme convoca vários personagens do “WarnerVerso”. Em um piscar de olhos, vários personagens das franquias do estúdio surgem em cena. King-Kong aparece saltando enquanto um dragão do Game of Thrones voa ao fundo. O Gigante de Aço senta para assistir ao jogo junto de figuras como O Máskara, o Neo de Matrix, Batman, etc. Pernalonga e companhia se transformam rapidamente em versões 3D deles mesmos. É um tipo diferente de indução ao épico. Se Space Jam era a cara dos anos 90, Um Novo Legado é a cara de um filme pop dos tempos atuais: o épico não vem do envolvimento com os personagens no filme e a história contada. Nesse cinema do ‘fan service’ atual, o épico vem do extra-filme, vem da quantidade de personagens e referências você consegue identificar.
É muito simbólico que o filme se dedique tanto pelo que ocorre em segundo plano dentro do quadro, com suas referências ao fundo, quanto pelo que vemos em primeiro plano. O filme original confiava nos Looney Tunes como atração principal do filme. Não existe essa confiança em Space Jam 2. O humor estilo “Três Patetas”, que começava e terminava em si mesmo, não tem mais espaço nessa comédia sarcástica e referencial dos tempos atuais? De repente, não se dá mais tanta atenção às idiossincrasias de Frajola, Piu-Piu e companhia, mas sim em inseri-los no universo DC, ou no universo de Matrix, e assim por diante. É um filme que não confia nos próprios personagens.
Mencionei como o primeiro Space Jam parecia com um filme. Na fotografia digital e estetizada, tudo em “Space Jam – Um Novo Legado” parece uma peça de publicidade. Não pretendo fazer aqui um argumento contra os tempos atuais. O problema desse filme-publicidade que o novo Space Jam se tornou é que, como num comercial, todos esses elementos acontecem de forma imediatista, como se tivéssemos apenas alguns segundos de atenção para digerir todas as informações desse produto, como num comercial para divulgar a HBO Max. Se o filme tivesse sucesso nessa forma de contar a história, não haveria problema algum. Mas não é o que ocorre aqui nesse produto, onde nada parece importante dentro do próprio filme. Onde a quantidade de franquias e marcas sendo mostradas constantemente na tela pasteuriza todo o resto. Onde o excesso tira o poder daquilo ser especial.
Eu acredito que a maioria dos filmes infantis são, por excelência, nostálgicos. A nostalgia que se tem de ver um filme infantil não tem tanta relação com uma marca ou personagem só porque os acompanhamos quando mais novos ou que seja. Tem relação com a memória do deslumbramento de descobrir mundos, personagens e contações de histórias quando crianças. É ver temas e ensinamentos, complexos ou não, através dos olhos de uma criança, e poder provar mais uma vez dessa sensação. A nostalgia que Space Jam 2 quer provocar é devotada totalmente às marcas. É uma derivação de sentimentos que experienciamos de forma mais potente com tais marcas em outros tempos, pela eficácia delas na época. É um produto para o adulto que cresceu com o primeiro filme, por mais que digam que “é um filme para crianças”. Space Jam 2 utiliza a overdose de cores e movimentos sem sentido para distrair os pequenos por algumas horas até a saída da sessão em direção ao restaurante fast food mais próximo, onde poderão comprar o brinquedo do filme que acabaram de ver e criar suas próprias histórias, muito mais interessantes e criativas do que o visto no cinema. O “é um filme pra criança” que usam como argumento parece vir de quem nunca foi criança, ou de quem se esqueceu de como é ser uma.