Mortal Kombat é exercício de replicação burocrático
O motivo de Sonic ser um filme fraco não era por seu personagem-título ser ou não fiel ao visual visto nos videogames, uma exigência feita pelos fãs após o primeiro trailer do filme trazer um mascote bem diferente dos jogos da SEGA. O ouriço foi remodelado e o filme lançado possuía a “skin” atualizada, idêntica o material de origem. Isso não tornou o filme melhor: é um amontoado de tendências feito sob comitê, de caráter genérico. Troque o velocista azul por qualquer outro personagem (digamos, um Crash Bandicoot) e teríamos quase o mesmo filme. Assim, o motivo deste Mortal Kombat ser fraco também não tem nada a ver com a carnificina promovida aqui, com fatalities e frases de efeito retratadas com fidelidade imensa ao material de origem.
Os fãs terem gostado ou não dos agrados à suas exigências nostálgicas e infantis não dita a qualidade do filme, e o sucesso de bilheteria de ambas as produções deixa claro o refinamento até alcançar a mediocridade de uma fórmula que não vai parar tão cedo. Mas é interessante notar a metamorfose dessas adaptações de jogos, dessa transição multimídia de licenças já estabelecidas e a transposição delas para as telonas. Os games mais cultuados estão cada vez mais se apropriando de uma narrativa de cinema para contar suas histórias, algo que não se restringe apenas ao realismo dos gráficos. As cutscenes, de repente, agora possuem uma aproximação à estética e narrativa cinematográfica, a fotografia por vezes sente-se planejada como se tivéssemos cinegrafistas filmando os gráficos, de repente até uma simulação da câmera na mão, com resíduos sujando a lente da câmera. Os astros de cinema agora fazem captura de performance e movimentos em jogos, algo popularizado pelo também fraco David Cage e seu Heavy Rain (2010). Se cineastas como Paul W.S Anderson e a dupla Neveldine/Taylor estavam à frente da curva, e pavimentaram caminho para toda uma nova geração que tem trazido com eficácia a linguagem de games para seus filmes mesmo sem que sejam baseadas em alguma licença dos games, com os chefes, capangas, a lógica “videogameficada” da simplificação de exposição em prol do “gameplay”, sente-se que a maioria das adaptações de games ao cinema não conseguem trazer isso justamente pela necessidade da emulação e o dever da contação de sua história – algo que perde um pouco do sentido quando o material de origem em si já almeja emular a sétima arte. Por que precisamos de um filme de Uncharted (sendo filmado nesse instante com Tom Holland e Mark Wahlberg), que já é uma mistura já cinematográfica de Indiana Jones com Jason Bourne?
E Mortal Kombat nunca foi lá um poço de profundidade. A mitologia funciona diante do que a história pede, mas seu atrativo (ao ponto da estereotipagem e paródia na cultura pop) sempre foi o caráter até então transgressor da violência gratuita e brutalidade de suas mortes. Particularmente em jogos de luta, a empolgação da violência costuma vir porque somos nós que a praticamos. Assistir a alguém jogando e quebrando ossos nos raios-X ou escalpelando Scorpion em Brutalities – sem poder jogar de fato – se torna entediante eventualmente. Em jogos de luta como Mortal Kombat e Street Fighter, se torna mais maçante. Talvez seja esse o motivo da redescoberta recente das qualidades de adaptações como Mortal Kombat de 1995, primeira incursão da franquia nos cinemas (por ninguém menos que justamente Paul W.S Anderson, dos divertidos Resident Evil de Milla Jovovich, sua esposa e musa), e Street Fighter, de 1994. Não existia a sanguinolência dos jogos no Mortal Kombat de Anderson, mas é um filme lembrado com mais carinho – à parte de nostalgias – por seu público alvo justamente pelo senso de descomplicacação que a obra trazia, comprometida com a mitologia canônica e um tanto quanto ridícula, mas fiel à essência anárquica do jogo.
Sem o poder da audiência do controle sobre a carnificina e brutalidade, o que o mais novo filme de Mortal Kombat oferece, senão o fan service, a replicação vazia de frases e momentos do jogo para delírio da torcida? Justamente isso: a sensação de se estar assistindo alguém jogando, sem poder jogar.
Produzida por James Wan, dirigida por Simon McQuoid (que até agora só possuía videoclipes no currículo) e escrita por Greg Russo e Dave Callaham , a nova versão tenta fazer sentido desse mundo de guerreiros que batalham o Mortal Kombat, torneio entre mundos que decidirão o destino da Terra. Muitos personagens dos games são representados com fidelidade aqui, sendo os coadjuvantes de origem asiática os maiores acertos do filme, como os Liu Kang e Kung Lao de Ludi Lin e Max Huang, respectivamente. Inserido no meio desse mundo, a carta mais velha do baralho de adaptações e apresentações de universo: Cole Young, interpretado pelo fraco Lewis Tan. O personagem não existe nos games, e serve como um “avatar” da audiência para que, através dele (a pessoa que desconhece esse mundo), possamos nos inserir em seu lugar enquanto as regras do universo são ditas a ele em diálogos expositivos. Uma das muletas mais sem-vergonha no cinema de “inserção de fã na narrativa” recente.
Não há muito o que falar sobre o novo Mortal Kombat pois sua história e narrativa visual se presta ao desinteressante a todo momento. O roteiro se rende a um mal um tanto quanto antiquado no cenário de adaptações que é tentar ancorar o mundo numa espécie de realismo, algo que vem com a adição de Cole – lutador fracassado de MMA – e sua família, adicionando um cenário urbano que parece existir apenas pelo fetiche de trazer as figuras de games para o nosso mundo real, e assim vermos personagens como Sub-Zero e Goro inseridos nesses cenários. Mas as soluções visuais nas quais McQuoid e seu diretor de fotografia Germain McMicking (do incrível Partisan (2015)) parecem chegar são burocráticas, pouco inventivas, e tiram as cores dos personagens e do mundo ao redor a ponto que não se encontra a satisfação que poderia vir do estranhamento desses personagens marcantes visualmente quando chocados contra o nosso mundo real, algo refletido no figurino desbotado dos mesmos que tornam tudo, desde a direção de arte, em algo desinteressante e pastel.
O filme cresce quando os personagens-chefes da franquia, Scorpion (Hiroyuki Sanada) e Sub-Zero (Joe Taslim) estão em cena, como na cena de abertura do filme. Nela, sente-se o apego à mitologia e dedicação à uma história muito mais interessante do que a overdose de fan-service e participações especiais que vemos ao decorrer do filme. Não incomoda que tais personagens soltem as frases de efeito dos jogos em inglês (como a icônica “get over here!”), mesmo que não falem essa língua. Isso não importa, ao contrário do que podem dizer os observadores de lógica de plantão. O problema é justamente essa transposição multimídia burocrática e estéril (a ponto de até mesmo a violência sanguinária perder seu efeito), e é a trilha sonora orquestrada de Benjamin Wallfisch que traz algum tipo de empolgação a esse universo que aqui se torna desinteressante. Uma adaptação de jogos que se evoca na saída de Mortal Kombat é Tomb Raider – A Origem (2018), uma produção igualmente medíocre em suas intenções de atribuir seriedade do mundo real àquela história – e o Tomb Raider de 2001 parece crescer numa revisita justamente por conseguir atribuir as iconoclastias dos jogos até mesmo na imagem de Angelina Jolie, escarrada de sua contraparte dos games. O que resta nesse Mortal Kombat é um filme mediano, um exercício de replicação burocrático e um tanto sem personalidade. A sensação de ver alguém jogando sem poder de fato jogar ou se envolver na história. Fica para o espectador o dever de saber até quando se contentará apenas com isso. Ao final do filme, o gancho descarado ao estilo Marvel de se fazer cinema e franquias, para delírio do fã médio. Mas a mensagem é clara: “daqui a pouco tem mais, daqui a pouco vocês verão o Mortal Kombat de verdade”. A promessa do clímax que nunca chega, veio, também, aos filmes de jogos.