Crítica: A Verdadeira História de Ned Kelly - Cinem(ação)
Ned Kelly
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Crítica: A Verdadeira História de Ned Kelly

Homens e Mitos

Ficha técnica
Direção: Justin Kurzel
Roteiro: Shaun Grant
Elenco: Russel Crowe, George MacKay, Essie Davis, Nicholas Hoult, Charlie Hunnan Nacionalidade e Lançamento: Austrália, França, Reino Unido; 2019 (22 de outubro de 2020 no Brasil)
Sinopse: Inspirado no best-seller de Peter Carey, este filme coloca em questão toda a mitologia criada ao redor do mito sobre a vida de Ned Kelly, observando o passado de violência de toda uma sociedade. Acompanhamos a juventude de Ned e observamos sua vida até o final, percebendo, sob a ótica do protagonista, o quanto é distorcida a fina linha que separa o certo do errado. As motivações de Kelly são reveladas e as tragédias em torno de sua gangue são mostradas de forma intensa e poderosa, a começar pelo amor de uma mãe por seu filho.

Ned Kelly

Os dois trabalhos anteriores do diretor Justin Kurzel, “Macbeth” (2014) e “Assassins Creed” (2016) pareciam implodir não exatamente por serem obras ruins, mas por equívocos perceptíveis a um nível conceitual, seja em explorar Shakespeare por um âmbito visual, deixando o texto em segundo plano ou pelos esforços de tornar complexo e didático o enredo uma serie de videogames. Apesar de falharem em suas execuções justamente pela proposta equivocada, os filmes eram, ao menos, dois experimentos dignos, com um visível traço autoral.

A Verdadeira História de Ned Kelly, novo filme do cineasta, parte da mesma premissa revisionista: transformar a mais nova adaptação ao cinema da história de Ned Kelly, o maior fora da lei na história da Austrália, ladrão de bancos e assassino de policiais (alçado a um status mítico e icônico), em uma ode ao punk rock, como os créditos finais, ao som de uma música do gênero explicitam.

E é curioso como a condução da narrativa parece contraindicar isso, visto que, assim como o Macbeth de Kurzel, a história de Kelly é contada com um ritmo cadenciado, com planos de longa duração, fotografados com esmero técnico por Ari Wegner, o que parece renegar o estilo e conduções curtas, mal polidas e enérgicas tão comuns em faixas de um punk. A influência do lifestyle, no entanto, está nas inspirações estéticas, na trilha sonora orquestrada composta de acordes de guitarra pesados por Jed Kurzel, irmão de Justin. Quando vemos Ned Kelly (George MacKay, astro de “1917”), já em sua vida adulta, se alongando de costas para nós, de frente para uma bandeira do Reino Unido, com um corte de cabelo incomum para os anos 1800 em que a história se passa, é captada – além de uma imagem icônica em uma obra que pretende desmistificar o próprio ícone – uma imagem atemporal, descolada desse século XIX e que evoca – no físico definido de seu protagonista sem camisa que se prepara para uma luta de imigrantes que entretém britânicos da alta classe – justamente a imagem de um rockstar, pronto para entreter sua plateia. Se o próprio Kurzel diz em entrevista que a mãe do protagonista, Ellen Kelly (Essie Davis, revelação de Babadook), usa botas e calças ao invés de vestidos para evocar justamente Patti Smith, a mãe da poesia punk, é impossível não vermos Iggy Pop (um dos pais do movimento) escarrado na tela quando acompanhamos Ned dançando sem camisa ensanguentado perante aqueles ricaços.

No entanto, A verdadeira História de Ned Kelly pretende desmistificar esse rockstar e, até chegarmos na elétrica cena de briga citada acima, acompanhamos os caminhos que levaram esse imigrante a se tornar o líder de uma enorme gangue de irlandeses que se rebelaram contra os oficiais ingleses, desde quando Kelly era criança até seus anos como adulto. A obra é dividida em três atos: “Garoto”; “Homem”; “Monitor”. Nesse sentido, é curioso que associemos o crescimento de Ned mais pelos homens que passaram por sua vida em momentos determinantes do que por escolhas tomadas efetivamente por ele, como se Kelly, desde sempre colocado num ambiente precário e cercado de figuras paternas repugnantes, não tivesse controle sobre seu próprio destino. E se uma das coisas mais interessantes do filme é justamente sua relação com a mãe, a obra pode ser vista muito bem como uma história de pais e filhos, não só ligados pela genética. É falando sobre seu pai em uma narração em off – na carta que Ned escreve para seu filho – que a figura-título inicia a história, e ele está, desde o começo, condenado a se tornar seu pai, se tornar “o homem da casa”, como diz sua mãe – e isso vai muito além dos hábitos que Kelly adotará posteriormente em sua vida. Quando seu pai é levado por oficiais ingleses, é Ned quem toma o lugar do patriarca para colocar comida na mesa.

Em momento determinante de seus anos como criança, Ned escuta de Harry Power (Russel Crowe, ótimo no papel), homem que substitui o pai do garoto como figura paterna, que deve “Sempre se certificar de que você é o autor de sua própria história, porque os ingleses sempre pegam e estragam tudo”. E é nessa chave que o próprio filme se inicia, ditando deste o início que o que veremos a seguir “não é uma história real”, contradizendo o que Kelly diz na carta que escreve para o filho e que servirá de narração para a própria narrativa. O Ned Kelly  de Justin Kurzel se encontra nesse momento da história, nessa Austrália Colonial, tentando preservar uma espécie de herança histórica sem que saiba de fato que o está fazendo, como se estivesse preso numa narrativa inevitável, de um destino que não escolheu, tentando romper isso de alguma forma meramente alfabetizada.

Ned Kelly

Kurzel e o roteirista Shaun Grant estão mais interessados nos anos de formação, no garoto por trás do homem – mesmo nos segmentos do ato chamado “homem” no filme -, dedicando seus esforços a estas partes. Portanto, quando vemos Kelly com sua armadura de ferro já icônica, olhando o mundo pela fenda estreita do capacete claustrofóbico, não sentimos catarse pela consumação do ícone heroico de um povo oprimido pelos anais da história como nos foi tanto vendido em outras produções que adaptaram a biografia de Ned Kelly ao cinema, mas sim o lamento pela realização do que ele estava fadado a se tornar, lhe tirado o poder da escolha sobre o próprio caminho da vida.

E é irônico que sua derrocada venha na escolha de aceitar o fardo do mito, como se tivesse um clarão de consciência sobre o símbolo que poderia se tornar. Nessa desmistificação do ícone, encontramos apenas um moleque cheio de raiva (e a escolha pelo rosto raspado, limpo, contrapondo a figura real barbada e viril do Kelly da vida real é acertada). Quando Ned diz para si mesmo, em momento que precede o grande clímax, “poderia eu ser um escritor?” ele encontra sua ruína, pois finalmente aceita a percepção de si mesmo como mito, enquanto tem sua terra, sua história e a de seus antepassados roubada de si, para fervorosos aplausos de aristocratas ingleses, contrapondo o silêncio de seu óbito no belo plano que encerra a projeção e nos momentos finais de Ned ao encontro de seu fim: frio, solitário, mas também humano.

  • Nota
3.5

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