Crítica 2: Mosquito – 44ª Mostra de São Paulo
“Mosquito” é um filme belíssimo que olha para o passado e enaltece seus heróis, com ressalvas.
Leia a crítica de Matheus Macedo
Ficha técnica:
Direção: João Nuno Pinto
Roteiro: Fernanda Polacow, Gonçalo Waddington
Nacionalidade e Lançamento: Portugal, Brasil, França, 22 de janeiro de 2020 no Festival de Roterdã (44ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Zacarias, jovem português de 17 anos, se alista no Exército durante a Primeira Guerra Mundial. É enviado a Moçambique, na África, com a missão de defender a colônia portuguesa da invasão alemã. Zacarias, porém, contrai malária e é deixado para trás quando seu pelotão segue rumo ao front de batalha. O rapaz não se dá por vencido e parte, sozinho, para alcançar o esquadrão. Ainda sofrendo os efeitos da enfermidade, ele passa a ter dificuldade em distinguir a realidade das alucinações que vem tendo. O roteiro de Mosquito é baseado na história real do avô do diretor, que foi um dos soldados mandados a Moçambique na guerra.
Elenco: João Nunes Monteiro, Sebastian Jehkul, Filipe Duarte, Josefina Massango, Miguel Moreira.
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Seria difícil elencar as cenas mais bonitas de “Mosquito”. Vemos uma série de imagens de encher os olhos, e essa representação do passado dá o tom do filme. A fotografia delicada aproveita as cenas escuras sob a luz do lampião, as imagens noturnas azuladas e as cenas repletas de flare para enaltecer o protagonista.
Por falar em enaltecer, a descoberta de que o cineasta João Nuno Pinto está a contar a história de seu avô apenas reforça o sentimento de evocação de uma memória familiar. Pensar em “1917” não é impossível ao vermos a trajetória de Zacarias, soldado português enviado para lutar contra os alemães em Moçambique no período da Primeira Guerra. É uma jornada solitária no meio da guerra. Mas o filme de João Nuno Pinto traz mais nuances e elementos a se analisar do que o de Sam Mendes.
Zacarias queria ir à França. Mas foi posto em um navio com “loucos, prisioneiros e perdidos” rumo à colônia africana de seu país, onde deveria enfrentar os horrores da guerra previstos por seu sargento no navio. Mas “Mosquito” fala de mais do que apenas a guerra. O filme é uma revisita e um repensar sobre a história de Portugal. Ele tenta reconhecer o passado violento e os problemas causados pelas ações do país, ainda que acabe deixando transpassar uma visão essencialmente eurocêntrica em alguns momentos.
Zacarias não é visto enfrentando os horrores da guerra, e sim os desafios da solidão ao ficar para trás de seu grupo. Como Jesus no deserto, vive seus maiores desafios quando vaga sozinho na floresta, sofrendo de febre, fome e alucinações. Mais tarde, ele chega a um paraíso que não lhe pertence – uma sociedade matriarcal que tolhe sua liberdade e depois o deixa ir – diferente dos homens que o acompanhavam antes, que carregavam o ódio de quem foi explorado.
As mulheres do local são a antítese do exército masculino que acompanhou Zacarias, e até mesmo de toda a sociedade que ele representa. O momento do filme em que ele convive com elas não apenas promove um respiro ao trajeto do protagonista como também representa a (tentativa de) conexão do português com o povo africano.
É como se o diretor buscasse reconhecer o passado com alguma redenção (especialmente quando o forçam a trabalhar), embora acabe fazendo isso com distância, sempre com olhar de quem admira e estranha. É o que se pode pensar quando assistimos à discussão das mulheres com o protagonista diante delas: a câmera de baixo, a falta de legendas, tudo nos afasta dessa sociedade.
Com um desenho de som extremamente bem feito, “Mosquito” chega ao fim com o alívio de um personagem que “venceu” sem ter precisado participar da violência das batalhas. E mesmo que o soldado alemão conte que a vila destruída foi devastada pelos portugueses (que diferença faz qual exército foi?), é o desapontamento do protagonista com o resultado que finalmente o transforma na figura do “homem bom”.
Esse protagonista íntegro, bem como a forma com que “Mosquito” enxerga Moçambique como um grande obstáculo a ser vencido, são elementos que carregam consigo os resquícios do olhar eurocêntrico e da concepção do português como o “bom colonizador”. Mas o fato de ver os soldados, tenentes e sargentos como seres atormentados e incompetentes funciona como um processo de reconhecimento de que o povo português deve mudar a forma como olha para o seu passado.
“Mosquito” é uma produção tecnicamente excepcional, e merece todo o reconhecimento por isso. É um olhar para o passado que precisa continuar a ser feito pelo cinema, com uma história que merece ser contada. Que bom que alguém o fez com tanto apuro estético.