Náufrago e sua relação com o existencialismo
Robert Zemeckis, diretor de Náufrago (2001) e também de filmes como a trilogia De Volta Para o Futuro, Forrest Gump (1994), Contato (1997), entre outros, possui como característica um trabalho que mescla a ludicidade e atmosfera familiar com conceitos poderosos que envolvem o conflito do tempo, filosofia, crítica à sociedade, onde traduz esferas sociais representadas por um personagem e sua interação em uma situação-problema a qual, motivada pela busca de resolução, compreende a si e sua posição no mundo. É dentro dessa linha de linguagem que Forrest Gump (1994), que possui um protagonista que, sentado em um banco, conta sua história para estranhos e por conta da interatividade pode saltar o tempo de modo a representar, violar e refletir a sua própria identidade.
Dentro dessa análise prévia do autor, o filme Náufrago (2001) se estrutura como mais um exemplo prático dessa prioridade em transgredir o homem em busca da reflexão de camadas, nesse caso, de sua posição e configuração de existência no mundo. Desse modo, é possível à partir da coerência estabelecida desde as primeiras cenas, traçar um paralelo dessa desconstrução do protagonista com conceitos do existencialismo e fenomenologia pois, em síntese, a obra representa o ser comum, preso no cotidiano que se confronta de maneira involuntária a uma condição de isolamento e, mais do que isso, desprendimento total do que antes parecia ser a única maneira de ser; o indivíduo enquanto pertencente às imposições sociais, ávido pela adaptação e crescimento nela, se despe e, à partir desse deslocamento, adquire em seu âmago a inerência em olhar a si sob a perspectiva puramente humana.
O protagonista é Chuck Noland (Tom Hanks), um engenheiro de sistemas da FedEx. Ele é movido pela ideia estática de que sua realidade é o único meio, sua esperança e visão de futuro se baseia exclusivamente nessa linha de segurança, representada pela profissão. O filme deixa claro a ideia de jornada, ao apresentar na sua cena inicial uma estrada, ao passo que temos ao longe um automóvel da empresa percorrendo, simbolizando a vida sendo pautada e modificada por meio do trabalho. Há diversos planos detalhes exibindo relógios, no primeiro ato, mais uma forma de ilustrar essa ideia, onde o sujeito se pressiona constantemente pela marcação de sua vida como a única realidade possível.
O existencialismo como corrente filosófica se preocupa na relação do homem com o mundo, Sartre em seu pensamento diz que a existência precede a essência, estrutura suas ideias no conceito de que o homem primeiro existe no mundo por si só, e aos poucos vai se realizando conforme as situações que enfrenta e como, bem como as ações e interações voluntárias ou involuntárias. O problema com o avião e, consecutivamente, o náufrago no filme representa a abrupta interseção da obviedade na existência humana, quando o sujeito é obrigado a pensar em si e em sua trajetória de forma isolada, solitária do planejamento ou do futuro, representa tão somente o homem arraigado em sua sobrevivência.
Se todas esperanças, sonhos, sentimentos do protagonista se baseavam exclusivamente em sua vida social, por outro lado esse rompimento traz o conceito de solidão pronunciado por Sartre, onde o homem, tão somente ele, é responsável de suas ações, de forma que a ideia da natureza primordial é deslocada em uma criação conjunta com a ideia de sociedade. Dentro dessa diversidade de vidas, interesses e sistemas, o homem perde aos poucos sua capacidade de construir ou imaginar-se como tal, desse modo a ilha em Náufrago (2001) soa como a consciência não só do protagonista, como também – em uma visão estritamente simbólica – de todos aqueles
que despertam da perspectiva unilateral, onde sua existência caminha de maneira segmentada de formas diferentes para se alcançar o mesmo objetivo.
Ao ausentar-se de sua identidade, movido pela fatalidade, o protagonista desconstrói tudo aquilo que um dia o construíra, sua noiva, reputação e rotina se transforma em ilusão e o sentimento de desespero é pela situação catastrófica que se encontra, todavia existe uma lacuna no sentido filosófico, cai sobre si o drama de ver-se livre do que um dia fora primordial. A bola Wilson – personagem coadjuvante de extrema relevância para a trama o que, por sinal, é curioso, visto que se trata de um objeto – tem em sua simbologia um movimento de ansiedade pela busca da sociabilidade perdida, com seu rosto desenhado com sangue, ele traduz aquilo que se foi, representa o vínculo do náufrago com sua persona social, formada pela interação.
Cercado pelo mar, em um ambiente hostil e que banaliza o tempo representado como relógio, como citado na introdução, o protagonista precisa reaprender a viver diante à iminente catástrofe ou “despertar”, além de elementos emocionais, o físico e biológico também são reestruturados, a forma de andar, se comportar diante do ambiente e suas alterações, se alimentar, proteger, todas as leis sociais passam a serem completamente excluídas em prol da circunstância que exige do náufrago uma reorganização do seu tempo, espaço e existência.
A relação do ser humano com a ciência, sua habilidade com o fogo e o domínio do mar, todas essas marcas históricas que mudaram a história da humanidade voltam ao princípio ao passo que apenas um indivíduo, afastado dessa mesma história composta em conjunto, precisa dominar esses mesmos elementos cruciais.
Esse processo de deslocamento pode ser reconhecido como uma circunstância que extrai da experiência cinematográfica, através da linguagem precisa – o filme fora filmado em etapas, para o ator Tom Hanks emagrecer e se preparar para interpretar o personagem com o maior realismo possível – diversas camadas de reflexão filosófica, principalmente quando relacionados com a existência humana, o homem em relação com o mundo e, desse modo, é percebido como o existencialismo se encaixa nessa proposta por ter como significação essencial a fragilidade de conceitos externos como forma de acrescentar ou justificar a jornada do indivíduo, sua participação no mundo e escolhas se dá por si, sua jornada se modifica ao passo que situações e problemas surgem e o que dirá como será no fim, são suas escolhas e ações no tempo, contexto e espaço. Ao final do filme, quando o náufrago é resgatado da ilha, ele volta à sociedade desnorteado não só pelo trauma, mas pelo conflito de posições filosóficas: sua cama, o conforto, a
estabilidade financeira, a companheira, tudo é como era, mas se transforma em uma possibilidade, não exclusiva como antes. O relógio passa a possuir um novo significado.
Para obter qualquer conceito sobre mim, é necessário que eu passe pelo outro. O outro é indispensável para minha existência, tanto quanto, ademais, o é para meu autoconhecimento. Nessas condições, a descoberta de meu íntimo revela-me, ao mesmo tempo, o outro como liberdade colocada diante de mim, que sempre pensa e que a favor ou contra mim. Assim descobrimos imediatamente um mundo que chamaremos de intersubjetividade, um mundo em que o homem decide o que ele é e o que os outros são. (SARTRE, 2013, p. 48)
Referências:
O existencialismo é um humanismo. Petrópolis RJ: Vozes, 2013.