Crítica: Todos os Mortos – 48º Festival de Gramado
A segunda noite da Mostra competitiva do 48º Festival de Gramado trouxe mais uma temática importante. O filme Todos os Mortos, escrito e dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra, se passa na São Paulo de 1899, onze anos após a abolição da escravidão. O longa que discute sobre as marcas e fantasmas da escravidão em nossa sociedade também competiu pelo Urso de Ouro no Festival de Berlim.
Todos os Mortos traz em sua trama a história das mulheres de uma família da aristocracia paulista, que vê seu império de produção de café ruir com a abolição da escravatura e ser dominado por imigrantes italianos. Mesmo em sua derrocada, as três mulheres (uma idosa ex-baronesa, com suas duas filhas, entre elas uma freira) não querem abrir mão do que resta de seus privilégios. Em contrapartida o longa leva apresenta a vida de Iná Nascimento, uma ex-escrava, que luta para reunir seus familiares e encontrar um lugar na sociedade onde não há lugar para negros recém-libertados.
A premissa do longa é interessante e muito instigante, porém com suas falhas. Abordar o momento pós-abolição é de grande importância para compreendermos o nosso Brasil atual. E a direção e produção do longa consegue fazer um paralelo entre o período da jovem república e o país atual em que vivemos.
Para isso o filme mescla as cenas em cenários de uma casa no bairro do Campos Elísios do final do século XIX, com cenas externas em ambientas atuais. Evidenciando a herança da escravidão e racismo que ainda paira em nossa sociedade atual. Sem grandes locações e reconstruções históricas, o mergulho no passado fica por conta dos figurinos, comportamento e diálogos um tanto rebuscados.
O que mais me incomodou assistindo foi a mixagem de som, a qual me causou a impressão de que as vozes não se conectavam com as falas, em uma de dublagem mal mixada. Assim como, alguns diálogos eram atrapalhados pelo barulho de sons externos da cena. Outro fato que me incomodou eram os diálogos um tanto engessados, as vezes artificiais. Fiquei me questionando se a adaptação do som do filme para a televisão e streaming possa ter prejudicado a obra.
As figuras femininas e a herança escravagista
As mulheres têm papel central nesta produção. A começar pela família aristocrata. Cada uma delas possui uma representação importante na sociedade brasileira da época. Dona Romilda (Leonor Silveira), é uma idosa, que durante sua vida foi baronesa, e agora, já no fim de sua vida, está presa entre a necessidade de manter seus antigos privilégios e buscar remissão por seu passado escravocrata.
Sua filha mais velha, Maria (Clarissa Kiste) é freira e visivelmente representa o poder da Igreja Católica e a imposição da religião cristã, além da perseguição aos cultos africanos. Já Ana (Carolina Bianchi) é o personagem que talvez mais representa a elite brasileira da época e também a atual. Ana convive em sua cabeça com os fantasmas dos escravos da fazenda da família, e flerta com o desejo de voltar aos velhos tempos.
Fechando o círculo de personagens principais está Iná (Mawusi Tulani), uma ex-escrava, a qual representa o principal problema que temos na sociedade atual: a exclusão e a hierarquia racial do Brasil que perdura até os dias atuais. Sua personagem é a figura da mulher negra que busca um lugar na sociedade, que após a abolição não buscou incluir os negros, mas exclui-los, marginaliza-los e continuar subjugando-os.
É interessante o paralelo do final do século 19 com o 21, onde o racismo e a hierarquia racial da Colônia e Império são preservados, seja no comportamento ou em elementos da vida dos brasileiros. Não somente nas antigas casas habitadas pela ex-elite paulistana, mas também em casas e apartamentos mais atuais, onde existem ainda quartos de empregada ou um elevador de serviço. E nem é preciso dizer que, a grande maioria das empregadas são mulheres negras. Uma visível herança do que não deixamos de ser.