É necessário desmistificar O Poço?
Como um deslocamento truculento, do tipo que incomoda um passageiro desatento, enquanto pessoas caminham pelas ruas com fones de ouvidos, outros se atentam, com lucidez impenetrável, ao seu redor e toda desigualdade que caminha ao entorno de qualquer lugar ou momento.
A humanidade tem, como essência, uma ancestralidade conjunta, a base da civilização remonta à comunhão como princípio básico para o desenvolvimento; o homem só é frágil, mais exposto do que tantos outros animais que foram, através da evolução, se adaptando ao mundo hostil. O homem necessita pensar junto, criar estratégia em bando e se organizar, dividindo tarefas. Ainda coletores e já sedentários é possível perceber nitidamente como se dá todo o processo que levará ao desenvolvimento de grandes civilizações. Sua grandeza – que parte da comunhão – destaca seus líderes por meios diversos e se dá o nascimento do dilema do acúmulo, poucos possuem mais do que precisam para se alimentar e muitos não têm o suficiente para ver o amanhã.
O senso de empatia, cooperação, partilha faz parte, direta ou indiretamente, do nosso cerne, mas instalado em uma sociedade competitiva e declinada ao status, o banquete só é servido nas salas gigantes. O operário – que se encontra nos níveis inferiores de uma plataforma vertical – coleta com suor migalhas e é inundado pela mídia com a informação que deve ser benevolente e dividi-las.
É fato que a fome existe e dói tanto quanto consigamos imaginar. Se você acessa esse site, possui algum interesse na arte e tem acesso, mesmo que pouco, já não faz parte do grande grupo de gente (isso, gente, tal qual os que moram em Bacurau) que são pisoteados por todos os cantos por conta de um sistema que circula e esparrama algumas poucas pétalas. Existe fome, isso já aprendemos, inclusive os hipócritas que continuam fingindo que desconhecem, o necessário a partir dessa afirmação “óbvia” é compreender o porquê. Esse questionamento é papel da história, filosofia, sociologia, entre outros, mas é a arte que precisa incomodar, precisa ser exponencialmente crítica; coisa que “O Poço” não é.
“O Poço” é indeciso em sua narrativa. Visivelmente quer ser grande por possuir uma ideia-base chamativa, mas que infelizmente é utilizada para mostrar mais do que questionar; e dizer mais do que mostrar. Dez minutos iniciais bastam para explicarem todas as informações que poderíamos descobrir em doses homeopáticas. Logo em seguida existem uma série de cenas-símbolos que rejeitam seus signos por explica-los de maneira sintomática.
As plataformas são as classes socais, o ponto reflexivo é a comida cujo banquete é montado diante o desejo de todos, mas nem todos concretizam por conta da cobiça. Os primeiros comem e não partilham. A organização não é conjunta, não há comunhão, representando a tal sociedade plastificada; a única personagem que é mostrada transitando por entre as classes – até o último ato – possui trejeitos selvagens, primitivos, tal como nossos ancestrais nômades; a criança ser a mensagem é fruto de uma concepção da educação como único elemento capaz de transcender o abismo da desigualdade. A consciência de si como ser pertencente a sociedade e a compreensão da sociedade como elemento moldado pela elite forçando a classe dominada a lutar entre eles e não com o “mensageiro”, faz com que o indivíduo, independente da sua posição social, desperte para um olhar elucidativo, politizado, rejeite a alienação em prol da comunicação e aprendizagem com o outro; pois saber-se presente é ser educado, enquanto a formalidade só direciona o que se sabe de modo que enquadre nas necessidades sociais.
Existe na internet, hoje em dia, com a ascensão da informação, uma enorme necessidade de explicar a arte. Essa banalização da própria arte é nociva ao processo criativo, pois a linha tênue que separa a obra da sua venda se perde em um desequilíbrio quase infantil. “O Poço” não passa de um filme curioso, é interessante ao ponto que sua ideia base é profunda – mas não inédita – e ganha alguma credibilidade pelas referências ao cinema extremo sem, contudo, se aprofundar nem na ideia e nem no extremismo. É raso, travestido de obra Cult. Não é nem Cult e muito menos extremo, a geração Netflix se surpreende e gera boato com pouco. Mas o que incomoda não é isso, é quando supostos criadores de conteúdo e até mesmo o diretor se sentem no direito de explicarem um filme, sem se preocupar nem um pouco com a dialética diante à obra.
O filme tenta articular ideias mas é estável, ele tenta incomodar mas é confortável e fácil e a arte não serve apenas para mostrar, ela investiga, perfura, rasga e questiona, em um ato provocador. Percebe como tudo isso não acontece em “O Poço”? o que seria comum visto a quantidade de filmes razoáveis que saem todo ano, mas quando existe a pretensão é preciso o confronto.
A passividade diante o social, causa o caos político que estamos vivendo; a passividade diante à arte causa a limitação à obviedade. “O Poço” poderia ser um curta-metragem; ainda que a carne não tenha sido degustada, é necessário fazer-se refletir tal como a lucidez daqueles que enfrentam o dilema de estarem fixados nas classes inferiores pois, na vida real, não existe o intercâmbio de posições; quem habita o estágio duzentos e trinta vive e morre no duzentos e trinta; a ascensão social é vendida como esforço pela mídia maniqueísta quando sabemos que sobrevive em base à ignorância de classes de um indivíduo que se deslocou da comunhão porque afirmaram estarem certos.
Questione-se,