Jornada perturbadora e sonolenta em Maria e João
Eis que se faz necessário releituras de histórias que já se foram, ainda que seja assustadoramente claro que algumas lendas se vão, mas nunca se desfazem. “João e Maria” inserido no mundo contemporâneo soa como, em primeiro momento, aventura-ação de caçadores, depois os personagens invertem como quem precisa gritar – antes de mostrar – “eu faço coisas diferentes! vejam só”. “Maria e João”, Maria ninguém, Maria descobre-se e nesse trajeto sedutor a sonolência atinge um aspecto sombrio.
Conheci o trabalho ousado do Oz Perkins com o indeciso “February”, lembro-me vagamente da atmosfera, do intuito corajoso de brincar com o tempo e a narrativa, além das personagens femininas representadas pela Emma Roberts. Embora tenha gostado do filme em 2015, hoje ao escrever esse texto e, tempos antes, refletir sobre o trabalho do diretor, tenho a certeza de ter sobrado pouco de uma obra que agregou mas se apagou com a mesma intensidade da sua tonalidade lúgubre. É entusiasmante se deparar com ideias diferentes, ainda que seja frustante que esse processo passe por uma sonolência provocada pela pretensão exagerada sendo contrastada por um núcleo simples, como é o caso do mais recente filme de Oz Perkins.
Sinto e vejo cinema como uma plataforma de sonhos, me atrai a possibilidade de mergulhar em narrativas como rituais alucinógenos, então particularmente é óbvio que um roteiro baseado em elementos metafóricos, cenas desconexas e argumento que envolva o ocultismo me atraiam, mas é inegável que por trás de toda simbologia lançada a cada minuto descompassadamente habita uma obra de arte que não possui um direcionamento que seja tão potente quanto a sua pretensão ao longo do trajeto; é como um sábio que conta, resmunga, argumenta e se arrasta para ilustrar algo que você havia entendido nas primeiras quatro frases.
A fotografia taciturna, com pontuais cores vibrantes que envolvem os personagens e os aniquilam no quadro transmite uma vivacidade diabólica, os elementos ocultos e explícitos como a floresta e os vultos de bruxas, além de referências nítidas ao grande Jodorowsky fazem da experiência provocante, embora frustante. A imagética parece triangular, as três pontas de um formato incompleto: é a casa da bruxa e a sua plataforma de repouso, o desconforto.
Tirando a simplicidade da mensagem principal, comparado com a airosidade de inúmeras cenas que são excelentes quando isoladas, mas incrivelmente incoerentes quando percebido o quão destoante é a construção da história, o que sobra é a utilização sem sentido de duas figuras-símbolos dos contos de fadas que não encaixam nesse contexto imaginado, as referências clássicas poderiam facilmente ser indiretas para que o uso dos nomes relevantes não soasse como necessidade de vender para o grande público.
Como conclusão exprimo a sonolência do enfrentamento de uma ousadia perfeitamente intacta por nunca ser, de fato; enquanto João quer crescer e vê esperanças no uso de uma motosserra para cortar árvores como “adultos”, Maria compreende que manipula a natureza simplesmente por sê-la; por outro lado, percebemos ao assistir esse longa que um apanhado de boas ideias não sobrevivem sem um palco polido para o seu desenvolvimento.