Cenas da Tela: Prostitutas no Cinema.
Algumas vezes que vimos prostitutas com facetas além de sua profissão serem lapidadas no cinema, comentários do tipo “romantizar prostitutas” sempre surgem. Acontece que o cinema não romantiza prostitutas: ele as humaniza, o que é bem diferente. Prostitutas são humanas. Muitas têm filhos, família que deixaram (ou a família as deixou), um amor do passado. Elas se apaixonam e muitas vezes não se romantizam e deixam de viver o amor. Os motivos são muitos e variam a cada caso, porém impera o fato delas pensarem que não merecem o amor ou que nunca sairão daquela vida. Muitas garotas de programa norteiam suas vidas através dos pensamentos julgadores da sociedade.
É o caso de Myra Lester (Vivien Leigh) em “Waterloo Bridge” (1940, dir: Mervyn Leroy). Quando seu marido Roy (Robert Taylor) volta para a guerra ela se vê numa situação muito difícil com sua amiga Kitty (Virginia Field). As duas são bailarinas e fazem parte da companhia de ballet de Madame Olga Kirowa (Maria Ouspenskaya). Mas, Madame Kirowa proíbe suas pupilas de terem namorados, pois acredita que isso atrapalha o desempenho das artistas. Quando Myra conhece Roy ela não consegue evitar. Os dois se apaixonam perdidamente. Todas as tentativas de esconder o romance de Kirowa falham, até que ela consegue escapar de uma apresentação da cia para se casar com Roy. Na volta e com ajuda de sua fiel amiga kitty, as duas são despedidas. Uma por se casar e deixar o espetáculo e a outra por acobertar. O fato é que Myra e Roy se casaram tão rápido porque ele recebeu ordens imediatas de voltar a seu posto.
Sozinhas e desempregadas, Myra e Kitty enfrentam problemas sérios. Kitty trabalha num cabaré e espera que assim consiga sustentar Myra, mas logo descobre algo perturbador. Myra anseia em ajudar a amiga mas também acredita que nunca mais verá Roy, que é dado como morto. Então, ela vai para as ruas, deixando inclusive a mãe de Roy, Lady Margaret (Lucile Watson) sem notícias. Ela não quer que ninguém saiba como ganha a vida, nem mesmo Kitty. Os olhos tristes, vagos, tão sem esperança.
Existem vários perfis das que vagam. Outra, com um olhar totalmente diferente é Louise, mais conhecida como Lou (Judy Davis) em “Winter Of Our Dreams” (1981, dir: John Duigan). Como o filme não foi lançado no Brasil, podemos pegar a tradução livre do original – O Inverno Dos Nossos Sonhos. Ela fica sozinha nas ruas. Tão acompanhada pelos transeuntes. Tão sozinha por dentro. A noite pode ser solitária, fria, inconsequente, misteriosa. Quando sua amiga Lisa (Margie McCrae) partiu, de um suicídio, um violão se tornou seu companheiro, nas horas em que não estava com clientes. Ela o pegava, dedilhava sua canção favorita, “Burning Bridges”. Antes do violão, presente de Lisa, seu companheiro era um walkman. O que escutava? A única, sua única “Burning Bridges”. A letra da música falava com ela, lhe fazia perguntas. Ela tentava responder. Mas Lou não sabia as respostas. A vida para ela havia se tornado um “tanto faz”.
Ela vivia os dias. Passava por eles. Passava pelos dias com sua beleza pálida, seus cabelos loiros, encaracolados e curtos, que lhe conferiam a aparência de um querubim. Com seu corpo magro, porém bem esculpido, ela passava…pelos dias. Um por um. Devagar. Tentava ser sábia.
Provavelmente era. Os olhos azuis de Lou não eram vagos. Eram assertivos e atentos. Ela é madura. A prostituição a amadureceu. É tudo o que o espectador sabe. Ninguém conhece a história de Lou. De onde veio, se tem família, nada. Ainda assim, a interpretação de Judy Davis nos oferece uma personagem tão densa, cheia de nuances, que a impressão passada é que conhecemos tudo dela. Assim como o texto e a direção de John Duigan conseguem capturar que aquele era realmente o inverno dos sonhos de Lou – frio, misterioso e sem futuro.
A profissão pede roupas curtas e ela anda pela noite, com suas mini saias, com um jeito meio Betty Boop dos anos 80. Louise é tão madura, tão real, que as mulheres iriam querer fazer amizade com ela. Os homens que a conhecessem melhor iriam querer tirá-la daquela vida. É o que acontece com Rob (Bryan Brown), um mulherengo que viveu uma história com Lisa: eles eram hippies em 1969/1970. Tiveram um breve romance mas ele logo a descartou. Rob não era o tipo de cara que ficava com uma mulher por muito tempo. Ela se apaixonou. O encontro de Rob e Lou se passa devido ao interesse dele em escrever um artigo sobre a ex namorada. Logo Lou também se apaixona por ele e as vidas dessas duas mulheres, a viva e a morta, se transformam num universo paralelo.
Lou agora é um pouco de Lisa, atrás de um homem que não a quer. O que ela não consegue enxergar é que apesar de Rob não ser muito apegado a ela como mulher, ele se torna um amigo. Uma peça fundamental para a transformação de sua vida. E esse pode ser o motivo que levou Lou a se apaixonar: ele é diferente. Não a julga, tenta ajudar na saída dela do vício em heroína e abriga a garota em sua casa para um detox. Ele é o homem que enxergou nela alguém que poderia avançar, mudar por dentro, sair da prostituição. Isso a fascina. Pode ser que Rob tenha visto nela a Lisa que morreu. E a própria Lou foi aos poucos descobrindo isso, lendo o diário de Lisa, que é uma espécie de ídolo para ela. Ouvir “Burning Bridges” passou a ser uma obsessão.
É tão difícil para ela sair do vício das drogas injetáveis, mas Lou é o tipo de mulher que vai seguindo. Não importa se tenha que sair de porta em porta pedindo um canto pra passar a noite. Ela segue sem reclamar, com um ar de tédio. Talvez reclame por dentro. Porém, assim como a perda de Lisa, que a ajudava tanto, foi como perder um parente, a recusa de Rob, o homem que ela passou a amar abriu uma porta para finalmente vermos uma Lou triste e atormentada. Existe uma inquietude no corpo dela, como na maneira de andar, meio capengando. Quando está parada não consegue deixar de se mover. Pra entender Myra e Lou é importante compreender os que são marginalizados.
Já Myra sem Roy se transforma totalmente. Ela anda por Waterloo Bridge com olhar vago e triste. Ela não espera mais nada da vida. A direção de Mervyn Leroy junto com a excelência artística de Vivien oferece às audiências, até hoje, o lado obscuro de uma então menina apaixonada pelo ballet. Caminha lentamente pela estação de trem completamente perdida. Ela não queria estar ali, é nítido, pois seu olhar diz tudo. Sua amiga Kitty não sabe o que ela faz, pois ela mente estar em um outro trabalho. A decadência de uma jovem mulher. Quando Roy retorna é inacreditável para ela. Estática ao vê-lo, o recebe com uma certa frieza e distanciamento. Esboça contar a verdade mas não consegue. Aquela realidade já tinha se tornado uma culpa na vida dela.
Lady Margaret a adora mas Myra não consegue se perdoar. Na cabeça dela, agora ela não é mais digna de Roy. Ela tem um pensamento fixo de que o que se instaurou em sua vida é algo imperdoável, sujo e indisplicente. A radiância nele em vê-la não é suficiente para dissolver o fardo da prostituição. Este é um personagem, como em vários na História do cinema em que a mulher se considera suja e resolve se punir. Nem que seja abdicar do amor e cometer uma tragédia sem volta. A Myra de Vivien Leigh segue essa linha, assim como em “A Dama das Camélias” de Dumas, onde talvez a mais marcante versão para as telas foi a Camile de Greta Garbo, em 1936, dirigida por George Cukor.
Já a Belle Watling (Ona Munson) de “…E O Vento Levou”, em 1939, se mostra mais resignada. É sábia e divertida. Ela ama Rhett (Clark Gable) mas sabe que nunca terá o seu amor correspondido. Ela menciona um filho numa conversa com Melanie (Olivia De Havilland) e que ele está longe, na escola. Mas jamais menciona uma possibilidade de ficar com ele e viver com ele. No século XIX isso jamais seria possível e ela sabia disso. Em suas cenas, Ona Munson transfere para Belle uma emoção contagiante. Lágrimas caem de seus olhos sobre desejos impossíveis que nutre para sua vida.
Felizmente, ela encontra em Melanie uma alma compreensiva e amável, amiga. Melanie, como Rob de “Winter Of Our Dreams” não a julga em nenhum momento. Não é à toa que a Melanie de Olivia De Havilland permanece até hoje como um perfil querido e cativo pelo público.
Observações: Apesar de os créditos finais de “…E O Vento Levou” terem ficado somente com Victor Fleming, mais dois diretores passaram pela produção: Sam Wood e George Cukor.
O hoje famoso diretor Baz Luhrmann participa como ator em “Winter Of Our Dreams”. Ele é Pete, um adolescente imaturo apaixonado por Lou, que compartilha as drogas com ela.