O Rei da Comédia e suas Cores
O Rei da Comédia de Martin Scorsese é uma grande obra cinematográfica que critica duramente o mundo do espetáculo. Mostrando para uma sociedade o quanto essa obsessão pelos famosos e por se tornarem famosas também, leva as pessoas ao declínio social, emocional e, principalmente, mental. Transformando tudo na nossa vida em um mero degrau até o sucesso “definitivo” e, apesar de ser um filme da década de 80, O Rei da Comédia se mantém muito atual em suas críticas, afinal, mesmo trocando a mídia (televisão por youtube/internet), todo o resto continua tão pernicioso quanto.
É inegável o quanto o longa tem um lugar na prateleira dos grandes filmes da história do cinema, e uma posição privilegiada na extensa e brilhante filmografia de Scorsese mas, algo que pouco se fala quando todos comentam sobre o filme, é sobre sua capacidade de nos contar sem nos falar nada. A direção de arte de Lawrence Miller e Edward Pisoni é excepcional ao nos mostrar tudo que não precisa ser falado para complementar a história de Scorsese. Tanto pelo figurino quanto pelas pinturas dos cenários e é isso que veremos um pouquinho agora.
1 – VERMELHO: AMOR, PAIXÃO E PERIGO
O vermelho tem um papel bastante fundamental em O Rei da Comédia. Principalmente em uma das primeiras cenas do filme, onde o personagem Pupkin (De Niro) invade o carro de Jerry (Jerry Lewis), e começa a tentar convencê-lo de que seu texto é muito bom e que ele merece uma chance no The Jerry Show como um comediante Stand-up. Nesta cena o vermelho aparece de forma bastante sutil na gravata dos dois personagens, porém note como a de Jerry é ligeiramente mais escura que a do Pupkin. Demonstrando uma diferença entre um personagem que já é consagrado dentro do show business e não leva mais consigo todo aquele amor pela arte da comédia, e o outro que está tentando começar agora e sua ardente paixão pela comédia está na flor da idade.
Outro ponto bastante crucial do filme é o amor platônico da personagem Masha (Sandra Bernhard) por Jerry. Essa obsessão leva a um sequestro relâmpago onde Masha e Pupkin sequestram Jerry e o levam em cativeiro para cada qual com seus motivos pessoais. Pupkin quer conquistar um espaço no show de Jerry, enquanto Masha quer uma noite de amor. Aqui nós temos Masha entregando um suéter que ela mesmo fez a Jerry. Note como, aqui, o mesmo objeto (suéter) em cena tem significados diferentes para cada personagem. Para a Masha, o suéter vermelho feito à mão representa toda sua paixão por Jerry, enquanto para o próprio representa um perigo real de vida (note como o suéter está cortado nos braços nos mostrando exatamente isso).
2 – AMARELO/BRANCO – SHOW BUSINESS E AVAREZA
Com o tempo, percebemos que Pupkin não tem apenas uma paixão pela comédia, mas também uma obsessão por ficar famoso. Notamos isso em alguns momentos bem específicos. Primeiro em sua conversa imaginária com Jerry, onde os dois personagens estão jantando e Jerry implora para Pupkin que ele o cubra durante seis dias em seu show. É bem interessante notar que, nessa parte, Pupkin aparece com uma gravata branca e Jerry com uma vermelha (mais clara do que a do início do filme). Aqui notamos que Pupkin não quer apenas ser reconhecido pelo que faz, mas sim ser o rei naquilo que faz e por isso em sua cabeça ele inverte os papéis entre ele e Jerry. Nos seus sonhos lúcidos, Pupkin é o rei, o cara que está sempre por cima e com um papel de destaque dentro do show, enquanto Jerry é o homem apaixonado pelo que faz, mas apenas um garoto se comparado a Pupkin.
Outro ponto em que essas cores aparecem é novamente em um momento no qual Pupkin está imaginando seu próprio show. Aqui ele aparece sentado em uma poltrona vermelha e ao fundo uma parede também vermelha, porém sua gravata dessa vez é da cor amarela. Aqui Pupkin nos mostra mais uma vez que, além de sua paixão pela comédia e por Jerry, o que ele mais quer é se equiparar a seu mentor e ídolo. É ter seu próprio programa no qual ele pode comandar. Sua paixão é Jerry e a comédia, mas sua ambição é ser dono do show.
3 – CINZA – VAZIO E TRISTEZA
Aqui temos a minha cena favorita de O Rei da Comédia. Não apenas pelo seu apelo estético maravilhoso estilo Stanley Kubrick, mas também por todo o significado que ela carrega, e como o personagem de Pupkin ganha em camadas e complexidade apenas com uma composição perfeita da cena. Para compreendermos essa cena em sua essência temos que voltar para o começo do longa, no qual Pupkin aparece em meio à multidão que espera Jerry sair do estúdio de filmagens. Aqui o personagem de Pupkin aparece espremido pelas pessoas e é só mais um em meio ao amontoado de pessoas fãs de Jerry. Em contrapartida nessa cena, mais para o meio do longa, temos Pupkin olhando para esse painel com várias pessoas olhando para frente e ele fora da “multidão” do painel, querendo mais do que tudo se separar dessa insignificância. Deixar de ser apenas mais um, em um mundo difícil de se viver, para se tornar um ídolo naquilo que faz, porém a composição de cores chapadas e cinzas mostra a tristeza do personagem de saber que isso pode nunca acontecer e que no final, mesmo em meio à multidão, ele está sozinho nessa.
4 – AZUL – PERTENCIMENTO
Em O Rei da Comédia essa cor tem um significado extremamente restrito ao filme, pois o azul aqui significa o ápice do sonho de Pupkin. É a cor do escritório de Jerry no qual Pupkin vai várias e várias vezes tentar conversar com ele, para convencê-lo a dar-lhe uma chance de aparecer no programa com seu número de stand-up. Inclusive, em uma das cenas, o próprio Pupkin aparece com uma gravata da mesma cor do escritório para tentar sentir-se parte daquele lugar.
Scorsese, junto com seus dois diretores de arte (Lawrence Miller e Edward Pisoni), consegue construir cenas memoráveis, que contam um pouquinho de cada personagem apenas com alguns detalhes dentro da composição dos cenários. O Rei da Comédia é um filme bastante complexo, dramático e com pitadas de comédia para fazer o público pensar em toda essa tão nociva indústria da fama a qualquer preço. Seja ela na televisão (como na época em que o filme fora lançado), seja no Youtube e Instagram, agora dos nossos tempos. E se, recentemente, você assistiu ao Coringa e gostou do filme, assista O Rei da Comédia e compreenderá várias referências, homenagens e, de certa forma, um pouquinho da “cópia” que Coringa faz a O Rei da Comédia