EDITORIAL CINEM(AÇÃO): EM DEFESA DA ANCINE
Em Março e Abril deste ano, fizemos podcasts onde exploramos a crise no cinema nacional. A ideia era deixar claro para o público qual era o cenário naquele momento, como a Ancine estava lidando com sua crise interna, e como funcionam os processos de financiamento no audiovisual.
Quatro meses depois dos lançamentos dos episódios, o cenário de crise do audiovisual no Brasil se agravou, e as recentes manifestações do Presidente da República sobre a Agência Nacional do Cinema (Ancine) fizeram surgir mais debates e mais dúvidas. A tensão se agravou. Diante desta situação, o Cinem(ação) decidiu se posicionar por meio deste editorial..
Primeiramente, é primordial destacar que este posicionamento se dá com base no que pensam os criadores e editores do site. Assim como qualquer veículo, temos em nosso corpo de autores pessoas com pensamentos eventualmente divergentes e com livre direito à manifestação de suas ideias.
A Ancine é responsável por regular, fiscalizar e fomentar o audiovisual brasileiro. É a nossa única ferramenta para esse objetivo. Não é perfeita. Longe disso. Atualmente, então, na figura do seu atual diretor-presidente, Christian de Castro, indicado por Michel Temer, ela passou a ser omissa até para se defender das declarações de Jair Bolsonaro.
Tome como base os recentes acontecimentos com o ex-diretor do Instituto de Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, que na intenção de defender um corpo técnico de cientistas e rebater as declarações do Presidente sobre política ambiental e desmatamento na Amazônia, acabou sendo exonerado do cargo, mas deixou claro o posicionamento do Instituto e defendeu o trabalho sério que ele coordenava. Seu posicionamento jogou luz à discussão, mostrou que Bolsonaro mente, e acendeu o sinal de alerta para o mundo sobre a forma que tratamos nossas florestas.
Agora nos diga, o que fez Christian de Castro?
Frente às declarações de extinguir a Ancine, criar filtros para a Agência ou ainda falar que o governo não financiará mais filmes pornô como o da Bruna Surfistinha, o atual diretor-presidente simplesmente sumiu! Não há sequer uma linha de defesa. Sabe o que isso significa? Que além de estar sendo atacada, a Ancine tem se mostrado abandonada por quem deveria defendê-la!
Por sua inação, o senhor Christian de Castro ajuda a criar um estado de medo, hostilidade e perseguição dentro do órgão.Há quem trabalhe na Agência que diz que, “se por acaso você quiser fugir do Christian de Castro, esconda-se no gabinete dele.”
A conduta do diretor-presidente, somada às declarações autoritárias e sem qualquer base técnica do Presidente da República, acaba por obrigar que a Associação dos Servidores da Ancine, Setores do Audiovisual, Diretores, Críticos e tantos outros, se posicionem em defesa da Agência, que hoje é responsável por mais de 12 mil empresas espalhadas por todo o país, 300 mil empregos (diretos e indiretos) e, que além de tudo, ajuda o Brasil com uma receita anual de aproximadamente 25 bilhões de reais, o que corresponde a 0,5% do PIB!
Com um mercado crescente e com potencial para ser desenvolvido, qual é a lógica em sugerir a extinção da Ancine? Qual é a lógica para não evoluí-la? Para nós, a resposta disso só pode ser por ignorância, autoritarismo e ideologia.
Ao assumir a presidência da república, uma das primeiras atitudes de Jair Bolsonaro foi acabar com o Ministério da Cultura. Além disso, ele barrou ou suspendeu definitivamente repasses que a Petrobras fazia para patrocinar a produção audiovisual. Por fim, o TCU bloqueou o Fundo Setorial que alimenta a produção de filmes no Brasil.
Todas estas atitudes acabam por minar o mercado Audiovisual como um todo, já que boa parte dele depende de incentivo público para se manter com o ritmo e a pujança que se tem hoje.
Entenda, fazer cinema é caro! Além de toda produção, que envolve equipamentos, material humano, locações, viagens, hospedagens, alimentação, e muito mais, o filme ainda precisa ser distribuído e exibido. Cada uma dessas etapas tem imposto sendo recolhido, e não à toa é um mercado muito fértil para qualquer governo. A cada R$ 1 investido temos um retorno de R$ 2,60 em tributos. O crescimento da atividade é de 7% ao ano nos últimos seis anos. Note que estes valores se referem ao investimento feito a partir da iniciativa do Estado, que na fatia entre Produtor, Estado e Empresas, é um dos que mais ganham! Empresas privadas que queiram colaborar com o mercado audiovisual acabam tendo algum tipo de isenção fiscal e não tem um retorno financeiro como o Estado, que passa a ser praticamente um sócio do filme.
Considerando o momento de crise econômica, a lógica deveria ser: “façam mais filmes”. E não: “só façam filmes que passar pelo meu crivo”. Essa atitude só corrobora com o agravamento da crise econômica.
Todos aqueles que, mesmo vendo os fatores econômicos, ainda acham que filmes não precisam de incentivo público, deveriam saber que a paralisação colocaria o Brasil na contramão do MUNDO!
Para citar alguns exemplos, na Coreia do Sul, Espanha e Itália, os governos têm leis de “Cota de Tela”, ou seja, os cinemas e as TVs têm a obrigação legal de exibir um mínimo de obras nacionais. Já na Índia, Turquia e Canadá, os países têm barreiras tarifárias para a entrada de blockbusters hollywoodianos. Na França, Alemanha e Itália, existe uma taxa que é cobrada sobre os ingressos vendidos que é revertida em investimento na produção audiovisual. E em vários outros países, as TVs são obrigadas por lei a apoiar o cinema.
Todas essas medidas têm, de fato, um argumento cultural, mas sobretudo no século 21, esse argumento ganhou uma força extra: a econômica. Isso significa que, além de garantir o que se chama de “soft power” – que é o poder de influência cultural que um país conquista quando exibe produtos culturais ao redor do mundo – a produção cultural pode ser uma ferramenta para combater o desemprego e as desigualdades. Com isso, o uso de medidas do Estado para estimular o audiovisual é tão estratégico quanto a manutenção estatal de bancos e empresas de petróleo, ou o subsídio e estímulos ao agronegócio, por exemplo.
Perceba que em nenhum momento foram usadas as palavras “filtro” ou “extinção”. Isso porque qualquer governo que pensa minimamente na economia e cultura de seu país entende que não importa a natureza do conteúdo: deve-se, acima de tudo, produzir! Ainda mais em um país de dimensões continentais como o Brasil, que é rico em cultura e diversidade, cheio de pluralidades e realidades. A produção audiovisual amplia o olhar humano para outras verdades e nos humaniza. Pensar em diminuir esse mercado, além de ilógico no campo econômico, é imoral no campo humanitário.
Cabe lembrar que no período mais obscuro da história humana (que devemos olhar com atenção para não repetir os mesmos erros), a Alemanha Nazista usou o cinema como instrumentalização de propaganda do Partido Nazista. Tinha como objetivo manipular ideologicamente o espectador. Adolf Hitler e seu ministro da Propaganda Joseph Goebbels, criaram um departamento de cinema, barrando obras que iam contra suas ideologias, criando filtros para exibições e propagando o pensamento segregacionista.
No Brasil, desde 1996, o Estado passou a proporcionar o financiamento dos filmes. Extinguir a Ancine não será uma tarefa fácil para este Governo caso as ameaças de Jair Bolsonaro ganhem corpo. Tanto a Agência Nacional quanto o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), foram criados por leis, e o Presidente terá que enfrentar o Congresso Nacional para tomar essa medida. Porém, é possível que ele continue enfraquecendo a Ancine com as ações que tem tomado. Neste caso, cabe a nós não normalizar essas atitudes autoritárias, mesquinhas e revanchistas para que o audiovisual brasileiro sobreviva e, acima de tudo, evolua!
É verdade que a Agência está abandonada, com um diretor-presidente omisso e pouco disposto a mudar. Repetimos: a Ancine está longe de ser perfeita, mas precisa ser aperfeiçoada. O consumo de conteúdos audiovisuais tende a ser cada vez maior daqui para frente. Torná-lo mais plural, mais diversificada é um dever civilizatório. Temos que defendê-lo! Não aceitamos de forma alguma a extinção da Ancine.
Vamos então ser um pouco mais Ricardo Galvão, e muito menos Christian de Castro.