Crítica | Godzilla 2: Rei dos Monstros - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
2 Claquetes

Crítica | Godzilla 2: Rei dos Monstros

Godzilla 2: Rei dos Monstros

Ficha técnica
Direção: Michael Dougherty
Roteiro: Michael Dougherty, Zach Shields
Elenco: Kyle Chandler, Vera Farmiga, Millie Bobby Brown, Ken Watanabe, Ziyi Zhang, Bradley Whitford, Sally Hawkins, Charles Dance
Nacionalidade e Lançamento: EUA, 2019 (30 de maio de 2019 no Brasil)
Sinopse: Nesta continuação que se passa cinco anos após Godzilla (2014), os integrantes da agência Monarch precisam lidar com a súbita aparição de vários monstros, incluindo Mothra, Rodan e Ghidorah. Enquanto buscam uma aliança com o próprio Godzilla a fim de garantir o equilíbrio da Terra, os humanos acabam fazendo parte de uma grande disputa por poder protagonizada por titãs.

Godzilla 2 Pôster

Em 1998, Godzilla – o cultuado “lagarto gigante” da TOHO – ganhava sua primeira versão ocidental, dirigida por Rolland Emmerich. Pela primeira vez em solo americano, um dos ícones máximos do cinema Japonês era apresentado num cinema blockbuster distante das roupas de borracha e efeitos precários que caracterizam todas as suas produções nos então 40 anos de sua existência, no cinema tokusatsu. Apesar dos efeitos especiais de última geração para a época e todos os valores de produção que atribuíam um pedigree para a obra e removiam o aspecto de “filme B” associados com o personagem, a produção era um desserviço ao legado do mesmo, e, apesar de ter obtido certo sucesso de bilheteria, foi considerada um fracasso entre críticos e fãs do monstro. Desta forma, o diretor Garret Edwards teve espaço de sobra para trabalhar uma visão interessante e ambiciosa no seu Godzilla de 2014, primeiro filme do que viria a se tornar o Monsterverse da Warner. Seu filme anterior – que o lançou em Hollywood -, “Monstros (2011), colocava as criaturas gigantes em segundo plano para se focar na relação de seus protagonistas, inseridos no meio daquele cenário surreal. A proposta do cineasta para seu Godzilla era a mesma, e ela realmente funcionava bem no papel: ancorar o ponto de vista nos humanos – também de forma literal, já que as aparições dos monstros eram quase sempre registradas da perspectiva dos civis, atribuindo uma noção de escala e realismo interessante – e esconder as criaturas o máximo possível, construindo expectativa para um clímax que entregaria, finalmente, uma luta de monstros como os fãs sempre desejaram. O problema é que os personagens que habitavam aquela narrativa realista, séria e acinzentada eram desinteressantes, e a falta de carisma dos atores que carregavam o filme era sentida a todo instante. A construção absurda de atmosfera, no fim, não recebia a tão esperada catarse, e os fãs novamente se encontravam insatisfeitos, devido ao pouco tempo de tela devotado ao Kaiju-título.

O próximo filme do “Monstroverso”, Kong – Ilha da Caveira (2017), não poderia ser mais diferente. Estilizado e de cores vibrantes, o filme de Jordan Vogt-Roberts abraçava o espírito B e equilibrava muito bem o núcleo humano – intencionalmente unidimensional, mas divertido nos arquétipos que exercitava – com os monstros desta vez registrados à plena luz em suas gloriosas batalhas. Transformando os titãs em verdadeiros brinquedos no telão e os heróis humanos em soldadinhos de plástico (a fotografia de Larry Fong contribuía na estetização quase teatral), o surpreendente Ilha da Caveira aliava outro monstro icônico pop – desta vez americano – à sensibilidades e referências nipônicas, numa produção que mostrava que estes universos cinematográficos podem ter tons distintos e ainda assim funcionar.

O terceiro filme deste universo – o aguardado Godzilla 2: Rei dos Monstros – chegou finalmente aos cinemas, dirigido por Michael Dougherty. Diretor de produções menores de terror alçadas a um status cult (Contos do Dia das Bruxas, 2007; Krampus – O Terror do Natal, 2015), o cineasta – fã confesso do monstro gigante –, também com pretensões bem diferentes de Edwards e seu “suspense slow burn” de 2014, almeja fazer o mais próximo de uma tradução espiritual de um “filme de Godzilla” visto até hoje. Tais aspirações transformam Rei dos Monstros numa obra curiosa. Nos 65 anos do personagem, durante 34 filmes, o Monstro foi de alegoria viva dos terrores da bomba atômica a herói defensor da humanidade, em eras que ditavam o tom – dos mais cômicos e amigáveis às crianças aos mais sombrios que o retratavam como uma força incontrolável da natureza – das produções. Uma constante neste cinema de Kaiju, no entanto, eram as sensibilidades culturais do próprio cinema japonês – naturalmente mais expressivo – no subgênero onde estava inserido. Assim, em muitas destas produções, o núcleo humano narrava o que acontecia quase que em tempo real, com as exposições de tramas mirabolantes e absurdas – e as próprias ações que ocorriam na tela – sendo explicadas em tempo real. Algumas com viés político (como o ótimo Shin Godzilla, de 2016, que retratava a burocracia problemática do governo da época), outras com mensagens ecológicas (o psicodélico Godzilla vs Hedorah, de 1971) e aquelas mais fantasiosas, próximas a um cinema sci fi B que se dedicava em continuar uma espécie de mitologia dos monstros vista em capítulos anteriores (Godzilla vs Destroyah (1995), com a participação do filho de Godzilla). Com sensibilidades tonais que misturavam os combates dos monstros – à regra do gênero, sempre retratadas com maquetes e atores vestindo as fantasias – com comédia, drama e suspense, faz apenas sentido que estes filmes sejam relegados a um nicho muito específico de consumidores. Ainda que não possa emular os atores em roupas de borracha, Rei dos Monstros tem a intenção de homenagear e replicar grande parte dessa história e sensibilidades, com poucas concessões – para o bem e para o mal.

O que temos, então, são atores como Kyle Chandler, Millie Bobby Brown, Vera Farmiga e Charles Dance recitando as costumeiras bobagens sci fi que se esperam deste tipo de produção. Os três primeiros dividem o núcleo principal do filme como a família em crise que – é claro – está envolvida diretamente com surgimento dos monstros vistos aqui, enquanto atores como Thomas Middleditch, Sally Hawkins e Bradley Whitford se revezam nas exposições de roteiro,  com grandes pontos do enredo apresentados em segundos sem muitas explicações (e abandonados com o mesmo descaso), por personagens que entram e saem da trama com este único propósito.

Apesar das severas críticas por parte da imprensa, que se divide entre aqueles que aceitam as convenções tão específicas do gênero visto aqui e aqueles que exigem uma coesão básica do ponto de vista cinematográfico neste aspecto, com frequência sente-se que este não é o maior problema da obra. Porque, se a questão do roteiro é uma discussão interessante (as obras nipônicas do personagem são julgadas com a mesma rigidez?), e se Dougherty parece mais interessado em replicar as tradições daquelas excêntricas produções, os problemas aqui presentes se resumem ao fato de que o cineasta é muito menos diretor que Edwards e Vogt-Roberts, e sua falta de experiência para contar uma história deste escopo visual é precária do ponto de vista mais básico da linguagem.

Por mais que o filme de 2014 acabasse por falhar em sua proposta de entregar um espetáculo digno, quando as criaturas estavam em cena sentia-se muito bem a escala das mesmas. Mais do que isso, a atmosfera construída em momentos como o salto de um grupo militar na estratosfera ou a aparição do personagem título no aeroporto eram uma aula de narrativa visual. É apenas irônico que Dougherty falhe, também, em sua própria proposta, mesmo que oposta àquela de Edwards.  A nova produção tem um tempo considerável de Godzilla em tela, mas todas as tentativas de criar um momento de tirar o fôlego são prejudicadas por um arranjo porco da misé en scene, uma direção de fotografia (Lawrence Sher em seu filme de maior escala, e sente-se aqui sua dificuldade na decupagem) com planos desconexos , aliada à uma paleta de cores escura – certamente para esconder a computação gráfica não tão refinada – e uma edição frenética que tornam Godzilla 2 uma experiência frustrante de tentar se situar espacialmente na ação e entender o que vem ou vai para onde – o mais básico no cinema.

 Note, por exemplo, o papel duplo da atriz Ziyi Zhang: ao aparecer, em determinado momento, em uma locação totalmente diferente da anterior em questão de segundos, ficamos inicialmente sem entender o que aconteceu. Ao ver a segunda evolução de Mothra – uma das criaturas principais do filme e da série de monstros originais da TOHO –, a personagem sofre efeitos físicos que sugerem uma ligação quase espiritual com o monstro. O fato nunca é elaborado ou sequer mencionado na trama posteriormente. Demora para percebemos que o papel da atriz é duplo, e que  a mesma mostrou, mais cedo, uma foto da família onde possuía uma irmã gêmea. É, na verdade, uma referência às gêmeas da serie de filmes original, que invocavam a criatura. A confusão não ocorre por falta de atenção do espectador, mas sim por uma incompetência narrativa, já que Dougherty e seus montadores pouco fizeram para estabelecer isso, e realmente nem se importam, já que o momento deveria ser apenas isso, um fan service. Não seria um problema se a referência não interferisse na narrativa, mas ao pará-la para atribuir algum tipo de importância ao momento – com um close na expressão afetada da personagem -, o diretor investe algo no público que acaba indo a lugar nenhum. É cinema básico, e Hitchcock já deu a letra: “O tamanho de qualquer objeto no seu frame deve ser proporcional a sua importância para a história naquele momento”.

Assim, Godzilla 2 parece preso num jogo de ref(v)erências, de replicações e enaltecimentos que agradam o fã e prestam homenagem a um legado extenso e cultuado, mas que se sabota pela falta de experiência de seu diretor em contar aquela história e fazer jus a sua proposta. Porque até mesmo as produções antigas do Kaiju entregavam algum tipo de espetáculo, e tal espetáculo não pode ser apreciado aqui porque sequer conseguimos entendê-lo, muito menos apreciá-lo. As lutas dos titãs acabam, então, sendo renegadas a  fragmentos de socos, mordidas e golpes que funcionam isoladamente, mas não na própria construção da cena, já que não temos uma mera sensação de continuidade. Nesse jogo de reverencias, um elemento funciona: a trilha sonora composta por Bear McCreary, que mistura o tema original do Godzilla com a inclusão curiosa de corões, que cantam os nomes dos monstros como uma torcida ou um culto, como se a presença dos mesmos possuísse caráter divino. A melhor cena do longa é de Ken Watanabe – justamente uma dessas cenas de enaltecimento de legado, desta vez bem conduzido -, num momento íntimo com o monstro-título. O agrado ao fã feito na cena é emocional e funciona.

Godzilla 2: Rei dos Monstros

O resto, porém, acaba curiosamente se assemelhando muito a um filme de Michael Bay, com suas piadas simplórias e infantis – certo personagem compara o nome Guidorah (o monstro antagonista do filme e também icônico na série original) à gonorréia em determinado momento –, uma fotografia de câmera inquieta que confunde e desorienta e um escopo de tela enorme que impressiona mas não é utilizada a seu pleno potencial.

O resultado é, mais uma vez, um projeto que funciona mais no papel do que em sua execução, que pode agradar como um filme de nicho, mas que até mesmo sob essa ótica não atinge seu potencial pleno devido um diretor promissor em seus projetos pequenos de horror, mas inexperiente para comandar uma produção deste tamanho. Godzilla 2: Rei dos Monstros não é uma tragédia, e até diverte pontualmente – os fãs ficarão satisfeitos -, mas apenas cimenta – erroneamente – que Godzilla está fadado eternamente à uma diversão B de qualidade duvidosa. Jordan Vogt-Roberts e seu Kong: Ilha da Caveira, no entanto, mostraram que há sim espaço para diversão B e “bom cinema”. Enquanto aquela obra utilizava bem seus brinquedos, esta parece mais com aquele amigo rico que tem os bonecos mais caros e legais, mas apenas porque pode, já que nem sabe brincar com eles direito.

Deixe seu comentário