O que a tradução nos ensina sobre adaptações no cinema
Ao ler a palavra tradução, a maioria das pessoas pensa no ato de passar um texto escrito ou falado para uma outra língua. Na realidade, entretanto, a tradução pode ser compreendida como algo muito mais amplo.
Muitos teóricos da tradução concordam que ela é a origem da escrita. Afinal, quando escrevemos, estamos traduzindo nossos pensamentos em signos (ou seja, em combinações de letras e palavras que simbolizam um significado para o leitor – em uma explicação muito rasa cujo aprofundamento não cabe neste texto). Desde que o ser humano existe, a tradução faz parte da interação entre as sociedades, ainda que o processo tradutório como concebemos nos dias de hoje seja mais recente e tenha se consolidado no século XVI.
Antes de falar de cinema, vamos entender um pouco mais de tradução:
Conforme o linguista russo Roman Jakobson explica, com base nos estudos do filósofo Bertrand Russell, “o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por um outro signo que lhe pode ser substituído, especialmente um signo ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais completo’”. Ou seja, estes especialistas dizem que o processo de compreensão de palavras se dá por “traduções” que fazemos em nossa mente.
Jakobson explica um pouco mais. “Distinguimos três maneiras de interpretar um signo verbal: ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais”.
Vamos pensar em um exemplo? Se alguém diz as palavras “canguru” e “caneta” e você nunca ouviu falar deste animal e do objeto, as soluções possíveis são:
- Traduzir para signos da mesma língua, ou seja, explicar com outras palavras o que essas palavras significam, como ocorre no dicionário;
- Se você (ou qualquer que seja o interlocutor) fala uma outra língua, como o inglês, podemos traduzir estas palavras para ‘kangaroo’ e ‘pen’, ou seja, seus equivalentes na língua inglesa;
- Por fim, podemos mostrar imagens em forma de desenhos ou fotografias, ou até mesmo vídeos, de forma a trazer um símbolo não-verbal para aqueles signos.
Baseado nestas três situações, o linguista destaca que existem três diferentes tipos de tradução: a tradução intralingual (também chamada de reformulação), referindo-se à situação número 1; a tradução interlingual (ou tradução propriamente dita), referindo-se ao caso número 2; e a tradução inter-semiótica (também chamada de transmutação), exemplificada no caso 3.
Pensando nisso, podemos chegar à conclusão de que uma adaptação de um livro (repleto de signos, ou seja, de palavras escritas que exigem conhecimento do leitor para sua compreensão) para o cinema é uma forma de tradução inter-semiótica (ainda que o cinema não seja apenas formado só por imagens, mas por uma complexa combinação de linguagens verbais e não-verbais).
Então, a adaptação de filmes é uma tradução inter-semiótica?
Se, por um lado, podemos nos contentar com esta resposta, o fato é que há muito mais estudos a respeito da tradução que podem nos ajudar a pensar o cinema. E quando digo o cinema, não me refiro apenas aos longas-metragens adaptados de obras anteriores, mas todos os filmes. Afinal, toda produção parte de um roteiro, que é uma obra em linguagem verbal escrita, o que faz com que todo filme seja uma tradução do roteiro.
No entanto, existem outros estudiosos que ampliam essa visão e trazem novas luzes ao conceito de tradução, olhando para ela como algo muito mais amplo. O linguista e pesquisador Evando Nascimento faz um paralelo entre o que disse Jakobson e o que disse o filósofo francês Derrida, que foi seu orientador. Ele conta que Derrida se interessava pelo valor da metáfora, ou seja, do conceito de que passar algo de uma linguagem a outra é uma transferência ou translação (da qual se origina a palavra translation, em inglês), e argumenta que toda interpretação é uma tradução.
Seguindo esse conceito esmiuçado por Derrida, chegamos ao ponto em que podemos entender que, por mais forte que seja o desejo por parte do tradutor de ser fiel ao original, “supor fidelidade absoluta é perder, de saída, os riscos inevitáveis da operação transferencial de interpretar traduzindo”.
Portanto, quando nos aprofundamos nesses conceitos e ideias, vemos que existirá sempre uma perda quando se transfere um significado de um signo para outro, ou seja, quando se passa uma mensagem inicialmente em forma de um livro para algo em forma de um roteiro e depois em forma de um filme. Aliás, se atentarmos para o conceito de metáfora, como Evando Nascimento explica, vemos que desde Aristóteles se entende que ela é um transporte de uma coisa para a outra (e daí a origem da palavra “tradução”, oriunda do latim “traducere”, que inicialmente tinha o sentido de conduzir e transportar).
E o que podemos depreender disso?
Considerando o que diz Derrida, vemos que tradução e metáfora são termos quase equivalentes, mas há uma essência de infidelidade e traição nesse processo pois, ao se traduzir, naturalmente se perde (e se ganha). Assim, a transposição de uma obra anterior para qualquer outra em forma de musical ou teatro, os riscos são maiores, como explica Evando Nascimento (ou, em outra situação, até mesmo quando se transforma mensagens de “proibido estacionar” e “lombada” em placas de trânsito). “O grau de intraduzibilidade aumenta na medida da assimetria maior entre esses códigos heteróclitos”, explica o autor, referindo-se a códigos que seguem regras diferentes. Em muitas situações, diz-se que não há possibilidade de tradução, mas de recriação a partir de um original, como no caso da tradução de poesia e, – por que não? – nas adaptações de filmes!
Portanto, podemos depreender alguns elementos interessantes sobre o cinema a partir dos conceitos aqui apresentados. O primeiro elemento que eu quis trazer é o de que todo filme baseado em uma obra anterior sempre sofrerá uma perda, ainda que também pode vir a ter muitos ganhos. Desta forma, quando assistimos a um filme baseado em histórias em quadrinhos, livros, e até mesmo em outros filmes anteriores, sabemos que ele trará a visão de um “tradutor” que busca encontrar em novos signos alguma maneira de retransmitir uma mensagem de forma a gerar algumas perdas e alguns ganhos, e no fim das contas resta ao espectador mais crítico pensar se houve mais perdas ou mais ganhos. Quantas adaptações de livros não são analisadas por leitores da obra primária com reclamações ou reflexões sobre mudanças, transformações de personagens e atualizações que deixem a obra mais condizente com seu tempo de produção?
Outro ponto que acredito ser importante é ter o olhar de que todo filme é, de certa forma, uma tradução – ou uma adaptação. Ele utiliza-se de infinitos elementos, que vão de imagens em movimento à música, passando pela atuação e a língua falada para “ressignificar” um roteiro. Quando fazemos isso, entendemos que todo processo de interpretação passa pela metáfora, que por si só é um “transporte”, ou seja, uma mudança de lugar, o que faz com que ela seja, intrinsecamente, outra. Basta ler um roteiro antes de ver sua versão filmada para perceber que há elementos que podem ter sido cortados, assim como os elementos audiovisuais da fotografia e da trilha sonora (para citar apenas dois) transformaram a percepção final que antes estava apenas em forma de palavras.
Por fim, acho importante observarmos também a “tradução propriamente dita”, ou seja, a tradução interlingual (ou interlinguística) dos filmes estrangeiros que chegam com dublagens ou legendas na nossa língua. Não é incomum vermos títulos de filmes que parecem não trazer os mesmos sentidos do título original, ou até mesmo momentos de fala dos personagens com significados que parecem não ser exatamente aquele pretendido pelo “texto-fonte”, ou seja, o texto na “língua de partida” (esses conceitos são utilizados por diferentes autores mas se referem, de maneira geral, à mesma coisa). Um dos melhores exemplos que consigo pensar é o filme “Sen to Chihiro no Kamikakushi”, que seria algo como “O segredo do desaparecimento de Sen e Chihiro”, mas que se tornou “Spirited Away” (espiritualmente longe) em inglês, e apenas “A Viagem de Chihiro” no Brasil.
Se tem uma coisa que a tradução nos ensina sobre o cinema é isso: sempre haverá perda nos diferentes processos de “traduções” que permeiam o cinema. Pode haver ganhos. E cabe a nós observar tudo isso com mais maturidade e chegar às nossas próprias conclusões.
Há tradução boa e há tradução ruim. Mas não há tradução perfeita, porque nenhuma linguagem é transparente e nunca haverá correlatos certeiros.
*texto escrito apenas como exercício pessoal durante o curso da disciplina LP072-A – Introdução aos Estudos da Tradução no IEL – Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp)
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Bibliografia:
BERMAN, A (1984) Introdução. In: A Prova do Estrangeiro – Cultura e tradução na Alemanha romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut, São Paulo: EDUSC, 2002, p. 27 – 46.
BERMAN, A (1988) Da translação à tradução. In: Scientia Traductionis, n.8, 2010.
JAKOBSON, Roman. Linguística e teoria da comunicação. Linguística e comunicação. Trad. De Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1995.
NASCIMENTO, Evando. A tradução incomparável. In: WEINHARDT, Marilene et al (Org). Ética e Estética nos estudos literários. Curitiba: Editora UFPR, 2013. p.71-99.
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