Psicologia das Cores - Precisamos Falar Sobre Kevin e o Vermelho
Kevin
Artigo

Psicologia das Cores – Precisamos Falar Sobre Kevin e o Vermelho

Precisamos Falar Sobre Kevin tem um uso explícito, pontual e significativo do vermelho que talvez você nunca tenha notado ou entendido

Falar Sobre Kevin

ATENÇÃO: Contém Spoilers!

Dirigido pela escocesa Lynne Ramsay, Precisamos Falar Sobre Kevin, a partir de três linhas narrativas, conta a história do difícil relacionamento entre uma mãe Eva, (Tilda Swinton), e seu filho, Kevin (Rocky Duer /Jasper Newell/Ezra Miller). A primeira delas mostra a atualidade, onde vemos Eva tentando reconstruir sua vida enquanto sofre violência na rua, vandalismo de seus vizinhos e com seus próprios sentimentos, sem entendermos muito bem o motivo. Na segunda linha somos apresentados  a uma Eva diferente, que está feliz no casamento, tem uma vida equilibrada e bem sucedida, até que engravida de seu primeiro filho e a partir do seu nascimento começamos a ver o relacionamento de mãe e filho desde recém nascido, passando a infância e chegando a adolescência. Já a terceira linha narrativa vemos um evento ocorrido na escola de Kevin, no qual ele está diretamente envolvido. Essa linha nos é apresentada a partir de flashbacks de Eva. Todas essas linhas sempre têm a cor vermelha em destaque.

Tomatina

Logo no início do filme vemos uma Eva jovem, confiante e feliz na tradicional festa do tomate na Itália, toda suja do vermelho do tomate. Nesse momento somos levados a atualidade onde vemos uma Eva decadente, dependente de remédios e de vinho, que ao se levantar ela percebe que sua casa foi alvo de vândalos que jogaram tinta vermelha na casa. O que a remete a terceira linha narrativa, quando vemos uma Eva bem sucedida que recebe uma ligação e sai em desespero pelos corredores do trabalho e aperta o botão do elevador que é vermelho.

A todo momento a cor vermelha ganha destaque no filme. Seja de forma discreta ou escancarada, seja pequenos detalhes ou em grandes espaços. Mas por que? Na maioria das culturas e religiões o vermelho é símbolo do pecado, do sangue, do ódio, do mal, da guerra, do perigo. Tanto é assim que muitos diretores usam a cor vermelha para identificar seus vilões, como Martin Scorsese em Os Bons Companheiros. Dessa forma podemos entender o vermelho de duas formas no filme. Na primeira e segunda linha narrativa a cor vermelha aparece como um alerta ao perigo que permeia a vida daquela família. Já na terceira linha narrativa, a cor aparece como símbolo da culpa, do pecado, da morte que Eva carrega.

Kevin Bebê

É interessante que a partir do momento que Kevin nasce o vermelho vai se tornando cada vez mais presente na vida de Eva. É um abajur, um vestido, uma camisa, uma bola, a cada vez que vamos ao passado e vemos Eva, o vermelho está ainda mais presente na sua família. Ou seja, existe um perigo iminente, algo perigoso ronda Eva e sua família.

Enquanto isso na atualidade Eva tenta se livrar do vermelho, que aqui já trocou o significado. Nessa linha narrativa o vermelho representa a culpa que Eva carrega e que impede que ela siga a sua vida em paz. Isso fica claro quando ela entra no seu carro, que foi coberto de tinta vermelha, e tenta limpar o vidro coberto de tinta. Nesse momento Lynne Ramsay foca câmera no vidro carro. Temos uma visão embaçada, manchada de vermelho, que atrapalha Eva de seguir seu destino. A culpa que a personagem sente é tão grande que embaça sua visão, dificultando que ela siga em frente. A cada ida ao passado o vermelho, o perigo, está cada vez mais presente e a cada volta a atualidade vemos Eva se esforçando ainda mais para se livrar do vermelho, da culpa, e seguir em frente.

Camisa vermelha perigo a vista

Mas porque o vermelho está cada vez mais presente no passado? Já parou para se perguntar porque o filme se chama Precisamos falar sobre Kevin? Imagine se no primeiro momento em que Eva percebeu que Kevin não era uma criança comum, seu marido (John C. Reilly) tivesse lhe dado atenção ao invés de falar que ele era uma criança como outra qualquer, dócil? E se Eva ao invés de procurar apenas um médico tivesse procurado um outro especialista? E se Eva tivesse insistido que seu filho tinha problemas? E se eles tivessem falado um com o outro Precisamos Falar Sobre Kevin? Tudo poderia ter sido diferente. E já que a cada momento que voltamos ao passado o problema aumenta, o perigo também aumenta, e assim o vermelho aumenta. O alerta está ali, só não vê quem não quer. O único momento em que os pais conversam sobre Kevin, já é tarde demais.

Na atualidade Eva tenta se livrar do vermelho, porque? Afinal o perigo já foi contido. Mas agora o vermelho do qual Eva tenta se livrar é outro. Agora simboliza a culpa. A culpa que a personagem carrega. Afinal ela poderia ter evitado o problema se tivesse falado sobre Kevin. Por isso Eva tenta tirar o vermelho da sua vida. Mas sabe o passado? Sabe a culpa? Ela sempre vem nos assombrar. E a cada vez que Eva tenta recomeçar aparece que algo a lembra do passado. Como na cena da festa de natal, Eva parece feliz e sorri, o rapaz que parece gostar dela se aproxima, mas quando ela se recusa a dançar, ele a lembra do passado e a culpa retorna no vestido, no prato que ela deixa em cima da cadeira. Ou então no momento em que ela está fazendo compras e vê a mãe de um das vítimas, ela encosta em uma prateleira cheia de latas vermelhas, é como se a culpa a estivesse consumindo novamente. A culpa que ela carrega é muito grande, a carga é pesada demais, e o vermelho insiste em não a abandonar.

Eva descobre o que Kevin fez

E conforme o filme vai passando vamos entendendo o que aconteceu. A terceira linha alternativa, a qual somos levados nas lembranças de Eva, nos revela o motivo da culpa de Eva. Para começar somos surpreendidos ao ver que o ataque de Kevin a escola, não foi com uma arma de fogo, mas com a arma do herói da história que sua mãe lhe contou em um dos raros momento de paz que tiveram, a mesma arma que ele atirou contra a mãe que estava do outro lado da janela cozinha, a mesma arma que foi um presente dado pelos pais no natal: um arco e flecha, a arma de Robin Hood. Finalmente então entendemos o que aconteceu.

Nesse momento somos levados a cena inicial, quando Eva aperta o botão do elevador. Então finalmente descobrimos o que realmente ocorreu. Quando Eva chega na escola, ela descobre o que seu filho fez. Embora chocada, Eva se acha inocente, afinal ela não fez nada, o branco de sua roupa representa isso. Mas ao ver as flechas, a culpa começa a aparecer, o vermelho entra nela através das luzes sirenes dos carros de policia e ambulâncias.Quando ela chega em casa, ainda de roupa branca, Eva se acha inocente de tudo. Até ela Eva entra em casa toda suja de vermelho, nesse momento a culpa, toma conta de Eva, ela se entrega a isso. Por que? Na cena seguinte vemos o marido e a filha de Eva mortos pelas mesmas flechas que usadas no massacre da escola. O mundo de Eva caiu. Ela não tem mais razão para viver, culpa consumiu sua vida. Por isso a vemos tão acabada e derrotada na atualidade.

Eva Suja de sangue

Mas Eva é impetuosa por mais destruída que ela esteja ela quer se levantar. O que ela faz então, tenta de todas as formas possíveis tirar a culpa de sua vida. Ela começa a limpar a casa por completo, ela quer se livrar do vermelho e da culpa, chegando a limpar as janelas com uma lâmina de barbear. Afinal ela quer se levantar, ela quer se recuperar. E luta por isso por mais difícil que possa parecer, por mais trabalhosos que seja, ela vai se recuperar.

Eva tentando limpar a casa

Agora façamos um paralelo. Logo após descobrir que Kevin também matou o pai e a irmã, coberta de sangue Eva se deita na cama e se entrega a culpa. Afinal ela deu o presente, ela viu que Kevin tinha problemas, mas nada fez. Agora perdeu seu marido e sua filha caçula. Mas ao fim dessa cena voltamos para atualidade. E o que encontramos? Eva se limpando totalmente da culpa e do vermelho que tanto a perseguiu. Vemos ela passar as camisetas de Kevin ainda criança. E ao abir a cômoda, para guardar as camisetas, uma camisa vermelha! Perigo? Culpa? Não, Eva está se recuperando, a culpa já não a sufoca, o perigo foi contido. O que ela faz então? Ela cobre com uma das camisetas brancas, com detalhes em vermelho que ela acabou de passar, e então fecha a cômoda que é também branca. Nesse momento é como se Eva dissesse pra culpa: “Vou seguir em frente!”, embora em algum lugar escondidinha ela está lá. E para o perigo: “Você foi contido!”, mas ela sabe que ainda ele está lá, escondido, mas está lá.

Nesse momento, Eva sai de casa. E então temos uma cena emblemática. Ao ir visitar Kevin pela primeira vez vemos, em quase 1:40 minutos de filme vemos uma cena sem elementos vermelhos. Finalmente Eva consegue conversar com Kevin. Finalmente ela consegue se conectar com seu filho. E vemos que um resquício de humanidade nesse monstro. Kevin chorando abraça sua mãe. Nesse instante a câmera corta para fora da sala para uma placa branca escrito EXIT em vermelho. Naquele momento vemos no rosto de Eva a sensação de alívio. Afinal Kevin assumiu a culpa, ela não precisa mais carregar esse fardo sozinha. De repente os detalhes vermelhos no corredor vai ficando pra trás, cada vez mais desfocados, o perigo, o sinal de alerta, a culpa está ficando para trás. A câmera então corta para a saída, para uma parede branca, que quase ofusca nossa visão. É como se Eva tivesse finalmente se livrado da culpa, agora ela vai conseguir viver. Esse final emblemático, mostra que Eva deixou tudo pra trás e quer recomeçar sem se afetar pelo passado. Mas a camisa na cômoda na cena anterior é um sinal de que ela nunca vai se livrar da culpa e da responsabilidade, afinal porque ela não disse antes Precisamos Falar Sobre Kevin?

Eva e Marido falta de comunicação

Em Precisamos Falar Sobre Kevin Lynne Ramsay, construiu a história usando o vermelho como metáfora de culpa e perigo. Essa metáfora junto com o roteiro, fotografia, direção de arte, som e atuações extraordinárias, nos leva a pensar e tirar nossas próprias conclusões sobre o que acabamos de ver. Será que a tragédia poderia ter sido evitada?

É interessante e assustador ver como chegamos aquela tragédia. O fato é que desde o primeiro momento da gravidez, Eva não está feliz, e quando Kevin nasce, ele já sofre com as consequências do desprezo de Eva na gravidez. Mas o que mais chama a atenção, é a passividade do pai. Ele não dá atenção ao que Eva diz, e por isso tudo chega a um fim trágico para todos, e principalmente para vítimas inocentes. Se ele tivesse ouvido Eva quando ela disse Precisamos Falar Sobre Kevin! Se Eva tivesse insistido nisso! Se o casal tivesse procurado ajuda! Tudo seria diferente. Se tivessem dado atenção aos avisos de perigo, Eva não sofreria com a culpa.

Kevin atirando

O pior é saber que isso acontece na realidade. Recentemente no Brasil dois jovens em Suzano mataram 10 pessoas em uma escola. Recentemente as aulas em São Leopoldo foram suspensas devido a uma ameaça de ataque. Em minha cidade mesmo, a menos de um mês uma escola sofreu com ameças de atentado de um aluno. Sem contar os diversos ataques nos Estados Unidos por exemplo. Quantos Kevins não existem por aí? Se os pais parassem e falassem mais vezes Precisamos Falar Sobre Kevin, muita coisa seria diferente.

Precisamos Falar Sobre Kevin é apenas um filme, mas também nossa infeliz realidade. Lynne Ramsay usou o vermelho para alertar do perigo que permeava a família de Eva e Kevin, mas ninguém deu atenção. Depois usou o vermelho para destacar a culpa que Eva agora carregava por não ter feito nada. E nós será que vamos estar atentos ao vermelho de aviso? Vamos estar atentos para que não sejamos tomados pelo vermelho da culpa!

Kevin

*Esse texto é o primeiro de uma série que escreverei onde farei uma análise da Psicologia das Cores no Cinema. Caso tenham alguma sugestão, não deixem de comentar abaixo.

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